26.8.06

vende-se rapaz

é de desconfiar sorriso tão grande em público
- logo de seguida, o mais certo é cair-lhe da testa
uma tristeza pesada que logo se procurará aliviar
numa cerveja ou numa asneira descontrolada a sair-lhe dos lábios.

ainda assim, é alegre e animado, conta piadas, é expressivo,
carinhoso, amoroso, rabugento, em tantas coisas rápido
em tantas outras lento. costuma encontrar-se a passear por aí,
cabeça no ar a olhar pormenores de janelas e águas furtadas.

encontram-no muitas vezes nas palavras, muitas vezes no silêncio.
tanto faz viagens inteiras sozinho no carro calado
como um rádio avariado, como canta tudo aquilo
que uma sintonia reecontrada lhe possa sugerir.

de aspecto, apresenta-se bem: cabelo despenteado e em falta,
olhos castanhos claros chorosos, mãos macias, dedos indicadores,
boca desenhada, pernas grossas, barriga bonita, pés calçados,
muito pelinhos a sair do peito pelos botões da camisa.

com este calor, dorme despido. arrepende-se muitas vezes
de não ler antes de dormir mas sente-se aconchegado na cadeira do computador.
tem um relógio elegante que lhe deram nos anos
e come iogurtes com bolachas pela manhã.

de certa forma, cultiva uns quantos segredos sobre si mesmo,
na exacta medida em que os revela ao deus dará.
não está propriamente consciente de algum valor que lhe possa ser atribuído,
mas o mais certo é continuar por cá. vende-se rapaz.

24.8.06

Crónica de Farkasvár (final)

Na parte sul de Farkasvár existe uma estaçäo ferroviária onde começa uma linha condenada. Fica no fundo de um bairro de habitaçäo barata, de prédios de painel pré-fabricado, e depois de uma espessa mata. Sobe-se por uma rampa mal iluminada e ali está o edificio baixo (anos 30, arquitectura funcional e algo sinistra). O relógio ainda pontual, o interior vazio, as janelas fechadas. Do outro lado da colina, há arvoredo e, depois, campos de trigo.
Ao lado do edificio persiste um café (enfim, näo passa de uma tasca mal frequentada), e por ali vogam almas noctívagas, sem rumo; olham o televisor antigo, cheio de fantasmas, e conversam coisas que näo distingo a esta distäncia.
O último comboio está na plataforma: parece respirar, ganhando fölego antes de partir. É uma velha máquina diesel, mas vestida para a ocasiäo por um mágico ferroviário: interior luminoso e confortável, por baixo, entranhas obsoletas, de tecnologia ultrapassada; por dentro, forros simpáticos, ar condicionado.
A tarde desfaz-se num crepúsculo lento, que recorta as árvores do outro lado do espaço da estaçäo. Nas nossas costas (eu e a Klára observamos a máquina que descansa nos carris), há uma fileira irregular de pequenas garagens; um portäo aberto, um único, contesta a simetria.
Chegam os primeiros passageiros e eu pergunto para onde vai o comboio. Tento falar em voz muito baixa, para näo acordar a máquina.
„Vai para o fim do mundo, parece-me”, diz a Klára.
„E onde fica isso?”
Ela estica o braço, olha para diante, para um vazio que escurece.
„Atravessa umas quintas e chega até um lugar onde existe uma fronteira. Para lá dessa fronteira, é tudo muito incerto.”
Agora, surge um homem velho, numa bicicleta; sobe a plataforma; entra no comboio. O portäo da garagem fechou-se e move-se a sombra de alguém, que passa por nós.
„Parece que esta linha está condenada. É um tempo que acaba”, diz a Klára.
Observamos mais passageiros, aproxima-se o momento da partida. Duas mulheres idosas; um camponës; um jovem de bicicleta. O céu está a perder o azul. Um operário cumprimenta o homem gordo que termina o seu cigarro. Ambos sobem para o interior e o cheiro do tabaco dissipa-se e flutua até ao local onde estamos. O maquinista acende as luzes. A Klára canta uma cançäo infantil, que inclui um maquinista e doce de panqueca. A revisora vai dar ordem de partida.
Nisto, um homem corre pela rampa da estaçäo. Voz grossa, esperem por mim, esperem por mim, e corre, com um pequeno saco na mäo. Täo poderosa voz! É magro e alto, com bigode fino, ar alegre e uns olhos que choram… Tem uma serena dignidade nos gestos e uma intensa figura, o que näo parece pertencer a este tempo... Como uma pomba, ele sobe para o comboio e ouve-se o assobio, a lanterna que oscila. Mas näo há apito da máquina, apenas o deslizar suave, que cresce para trepidaçäo regular.
E as luzes que desaparecem na curva, ao fundo, parecem arquear-se para sempre…
No café da estaçäo, os retardatários bebem, pensativos.
Só quando fica muito escuro decidimos descer a rampa e regressar á cidade adormecida.

Para o Joäo Galamba de Oliveira (1951-2006)
Que a viagem te seja fácil, camarada


texto escrito num teclado estrangeiro

23.8.06

Moleskine

o sujo no chão durante a refeição, os legumes do prato impressionados com o peso da sujidade nas paredes, uma mulher de robe vermelho e óculos escuros a andar pela casa como se o sol lhe vivesse no tecto
- há vinte anos que não sei de si


o tempo a fazer-se nas fotografias da sala como comida engolida a passar toda junta pela garganta
- uma mulher sozinha a viver do cheiro das fotografias da sala; o robe vermelho que serve de vestido de gala, de vestido de noite, de vestido de ir ao pão: óculos de sol antigos nos olhos como se ali houvesse luz



a porta da rua a gritar a abertura, alguém que pára a distribuir publicidade nas caixas de correio do prédio ao lado: o cabelo vai crescendo no espelho da casa de banho
(ouvidos colados aos passos da porta)
- vinte anos é tanto tempo

a mulher de robe vermelho que se senta diariamente no sofá à espera deles, que a campaínha toque publicidade, que alguém venha, que alguém se importe
- publicidade, Senhora


a porta da rua que abre, o exercitar da voz, a publicidade que se deseja ter ainda que nem mais um panfleto entre na ranhura
-por favor, muito obrigado

todos os dias às 10:09 a felicidade a dizer-se ali
-por favor

o robe, os óculos escuros, ela própria, todos juntos a dizer;
a roupa do marido direita à vinte anos em cima da cadeira como se ele fosse sair do chuveiro de toalha a qualquer instante
- o meu marido só tomava duche de àgua fria

as calças, o camisa, os sapatos
- por favor, muito obrigado, eu quero publicidade, ainda bem que vieram porque eu estava a começar a ficar aflita com medo que não viessem hoje: eu aqui assim

a solidão dos dedos à noite à procura de sentido para a vida numa almofada de flanela gasta nas pontas pela sofreguidão da busca
(vinte anos é demasiado tempo)

- por favor, obrigado.

uma ressalva para a teoria geral das ferragens

podes cantar o som da faca, sim, canta
mas só no seu encontro com o papel fragilizado
por tanto tempo de exposição a um sol
que agora se te apresenta molhado e triste.

podes cantar o som da faca, sim, canta,
porque a faca namora a palavra e purifica-a
busca-lhe a sensatez e a intensidade
no momento em que, rubro, se torna o texto.

podes cantar o som da faca, sim, finalmente,
se o teu sossego é um lugar onde não estás
e o silêncio vive agora contaminado pelo pensamento:
o som da faca, em fúria, irrompendo pela memória.

20.8.06

para uma teoria geral das ferragens

tenho, na minha cozinha, uma colecção de facas afiadas
ou os cabelos despenteados no espelho do corredor
e ainda assim gosto de passear pela avenida de roma ao domingo
sorrir quando encontro o eduardo pitta de óculos escuros
beber um café com duas histéricas a planear demissões

tenho, na minha cozinha (ou no pensamento), facas afiadas
pouco seria se não fosse a calha da janela por onde desliza
uma porta aberta para o quintal da vizinhança que ao domingo
fecha todos os estores mesmo mesmo muito cedo
e ainda se acha no direito de espreitar detrás deles para a minha varanda

tenho, num sítio qualquer, sei que tenho, facas afiadas
os meus pulsos por sinal são tão brancos e tenrinhos
e hoje, vejam bem, logo hoje, no meu calendário, é domingo
estava capaz de sentir o frio correr-me pelas veias desvairado
estava capaz de escrever uma teoria geral do meu profundo desencanto.

Febre Hemorrágica (II)

Há em tudo isto uma ilusão triste dos sentidos: um estado de ansiedade de mãos, pernas, pés a gerar cansaço, um cansaço de tal ordem
- às vezes confesso que olho para ti mas não oiço o que dizes

quando tudo é imagem desfocada à maneira de Richter
- eu a ouvir-me cá dentro

(o que há-de ser de nós?)

quando era pequena e mergulhava na água fria da Ericeira durante as férias de Verão, achava que não havia som mais puro do que o som da àgua dentro da cabeça
(o momento do mergulho)

o som do corpo dentro da água a deixar-se cair: nós a sermos ela
- é que a rua em que trabalho é feita de neuróticos, de esquizófrenicos felizes a falar alto frente à porta, loucos paranóicos que me fazem encostar a mão à vidraça, me enternecem o queixo, olhos, lábios e me fazem desejar ser como todos eles lá fora


o cansaço a brincar-me na cabeça com peixes
- um som de dois pés ténis especiais a fazer o percurso que vai do Campo Grande à Calcada de Carriche, um som de pés que se abeiram de um muro para mergulhar no som do ar até ao carinho do asfalto



e o peso da queda.
porque quando era pequena e fazia férias com a minha mãe, mergulhava a achar que não existia som mais puro
mais solene
mais lúcido
do que aquele que se concretiza no mergulho: o som limpo da àgua dentro dos ouvidos
a água à espera do corpo em queda
o asfalto à espera do corpo em queda

Como é que eu nunca percebi?

16.8.06

superbacana (requiem por Fidel)

um batalhão de cóbois atrás de um carro de bois
cortam as sebes do palácio de Havana
casacos verdes e já ninguém se engana
ninguém se engana

uma mão cheia de aviões e tipos das televisões
atrás deles para fazerem a cama
barbas compridas e charutos de Havana
ninguém se engana

um petroleiro do sul ave rara bandeira azul
petiz birrento sem paciência para a ama
um hospital feito de açucar de cana
ninguém se engana

altruísmos
comodismos
comunismos
fidelismos

um autocarro turístico e um país de risco
em calções olhando sobre Havana
todos os escritores foram de cana
ninguém se engana

papas
presidentes
tiradentes
inocentes
(sim?)

uma história sem fim e não sobrou nada para ti
agora que te vês deitado na cama
e há quem dance já sobre a tua chama
apagada chama
ninguém se engana
outra vez.

Apelo do moinho - 1

Entretenho-me aqui sozinho más o campo todas as tardes, qu’ as manhãs já a nha senhora não mas deixa aqui fazer, quer companhia, tamém tá velha como eu, né. Faço um esforço tremendo pra me recordar do passado, mas acho qu’ o moinho é munto antigo, já vem do meu bisavô ou trisavô, até, pois. Antigo. Só eu já’ qui ando há sessenta e seis, pois, desde qu’ era garoto. Buli aqui munto. Agora só p’ra cá venho quando me apetece, qu’ é todos os dias, pois, tá claro, né, tamém deve ser o único vício que tenho, e isso agrada à nha gaivota, e ficamos os dois satisfeitos, qu’ eu já vou velho pr’a outros vícios!. É só o vento e o céu, um sossego que não é como lá na cidade, nem na vila, sequer, pois.
Clientes já quase não tenho, quem é qu’ hoje quer cozer o pão com farinha moída assim à antiga, né. Os novos não se atraem pra trabalhar, aqui há uns tempos ainda se abeirou aí um moço da Assafora, ma queria dinheiro logo e paciência não a tinha, ora com’ é que se pode lidar uma mó alveira de seiscentos quilos sem paciência? Não se pode, né? E eu vender isto não vendo, ai isso era o mai mal que me podia acontecer, qu’ as memórias são muntas. A câmbra não se tenta, o parque natural, qu’ é como lhe chamam, é uma cambada, pois, assim mesmo, tirando a doutora, engenheira, tá claro, não me leve a mal. Mas a verdade é qu’ há dois anos quase que não vejo um tostão do acordo que fizeram vocês cômigo, pois, né. Sará munto, cento e vinte e cinco eros por mês, pergunto eu, sará assim um subsido tão pesado que já tenho caminhado pr’a lá tanta vez e não o cumprem e não há uma alma com um pedacinho de tempo pr’a me ouvir, nem o responsável, todo sorrisos todo sorrisos apenas daquela vez qu’ acompanhou cá os da televisão.
Já vários me têm dito Benedito não te metas com os ministérios qu’ isso não é gente de confiança, larg’ó moinho mas é. Ma’ isto é a nha vida, abalo do moinho, faço o quê, acabo de morrer na tasca do Timóteo, com’ ós outros, um bocadinho cada dia, então pr’a isso distraio-me aqui, entretenho-me com o silêncio e às vezes com os garotos. Há dias uma franguota duma escola que aí veio, olhou pr’ áquela nesguinha de mar lá longe, mais este verde à volta, e diz que rica casa de campo eu aqui construía! Olhe, foi de rir! Não me contive, eles querem lá saber dos moinhos, querem é tar perto da água pr’ós surfes, são novos ma’ não são nada parvos, veja lá se eles não percebem logo pr’ó qu’ isto está destinado mal eu lhe vire as costas.
Por isso é que tão cedo não arredo. Eu paro, o moinho pára comigo. Pois. Tenho pena, tenho pena de tanta ignorância, de tanto desapego a esta beleza, de tanto desvario de dinheiros mal gastos, não se assuste que não é com a doutora, com a engenhêra, digo, que vai dar no mesmo, a mim desde que me paguem o combinado não me custa chamá-los a todos de doutores. Eu fico o doutor da farinha, pronto, pode-se dizer assim, né. É preciso a gente entreter-se com qualquer coisa na vida, e isto é uma ciência que também se faz de palavras complicadas, ora diga-me lá se sabe o que é um paneiro ou assim.

Crónica de Farkasvár (III)

Bálint sai da escuridäo a cambalear, veste t-shirt suja e calças velhas, mas nem sente o frio da noite. A barba desalinhada, a cabeça numa confusäo.
Na praça central, há dois palcos lado a lado e, no espaço rectangular formado com os edifícios, os trabalhadores da cämara colocaram fileiras de cadeiras de plástico, que o público já desalinhou. Bálint escolhe uma, estende-se nela, pés esticados, a enfrentarem o palco da direita (onde está a orquestra); para ver o outro palco, terá de inclinar a cabeça, pois o grande penso que tem na cara impede-lhe a visäo.
Afinaçöes, retardatários, o vento que se eleva, Bálint ainda sente a cabeça a andar á roda, (o vinho estava estragado) o amplificador descontrola-se para os agudos, as crianças näo se calam.
Podem começar, ordena o velho Bálint, com a sua barba confusa, o estranho penso da queda da semana passada (bebera demasiado e a enfermeira que o tratou era bonita, loura platinada).
E, de facto, o velho bebido parece comandar o concerto ao ar livre: a orquestra inicia uma passagem que teria soado belissimamente, se näo fosse o agricultor importante que, ao passar com o guarda-chuva espetado, magoa o velho nas costas e na cabeça. E nem uma desculpa, qué-queu-tenho-a-ver-com-isto?, vë lá onde pöes o ...; e temos concluído o primeiro incidente da noite de concerto ao ar livre, com palavröes, velhinhas escandalizadas, tudo por causa de um guarda-chuva intempestivo.
Mas a verdadeira tempestade prepara-se nos céus, embora agora se instale á custa dos violinos: o amplificador perdeu o norte e lançou um uivo que acorda toda a Farkasvár. Só o velho Bálint gostou da fífia eléctrica, bonita como cristal partido. Este acordava uma abóbora, explica.
A curiosa disposiçäo de palcos pode agora ser explicada: bailarinos percorrem o estrado, enquanto soa música da Transilvänia. O meu pai era da Transilvänia, diz Bálint, virado para a senhora simpática duas cadeiras ao lado, mas o vigilante agricultor do guarda-chuva, dois lugares adiante, ordena silëncio, qué-queu-tenho-a-ver-com-isto? näo te eriçes, o meu pai era mesmo da Transilvänia e veio em 1919, se queres saber...
Näo quer saber, viram-se costas ofendidas. A noite avança, com um novo número musical e maestro esforçado; passei muita fominha, eu, e esta música faz-me lembrar o meu pai e o que passámos na guerra e, depois, no comunismo, fica sabendo...
O importante agricultor agita de novo o guarda-chuva e pede silëncio. Bálint agita o braço e lança outro insulto. ao mesmo tempo, os dois homens levantam-se dos seus lugares, preparados para algo täo sério como a invasäo mongol. E, se näo chegasse a súbita chuvada, teríamos o segundo e mais grave incidente da noite. A orquestra parou, deslizam toldos e a multidäo desistente corre para as arcadas. De súbito, näo está ninguém ali. Confuso, o velho Bálint, que näo sentiu o frio, nem se apercebeu das gotas de água que agora surgem, gesticula no vazio.
Nas fileiras caóticas de cadeiras de plástico só fica Bálint, á chuva (que nem sente) a resmungar qué-queu-tenho-a-ver-com-isto?

Lajos Kormányos

Traduzido do original húngaro por Luís Naves
Texto escrito num teclado estrangeiro

15.8.06

Crónica de Farkasvár (II)

O que cada um sabe do seu destino nunca será muito mais do que o farrapo de uma miragem. Da margem do rio, László observa as cintilaçöes do sol na água e, nessa viagem no tempo, tenta captar a luz que se escapa e, acima de tudo, as cores que se transformam. O pintor está sobre areia escura, quase uma lama, e a mudança do cenário atravessa o mundo como as suas memórias.
Ao tentar captar a cintilaçäo solar, a imagem que se repete vem da infäncia e consiste num barqueiro, a meio do rio, de pé na sua barca, apoiado a uma longa vara que se segura na vasa turva do fundo. O homem tem um colete e um chapéu preto, de abas. Vai cantando uma cançoneta melancólica.
Aqui, o rio é muito mais turbulento do que (a lagoa) nessa recordaçäo. Na outra margem, Farkasvár debruça-se sobre a água e as memórias de László funcionam como este percurso, mais velozes a meio, mais lentas onde o roçar com a margem vai esboroando a terra. Aqui, também, a água é espessa, pois transporta consigo a lembrança de montanhas distantes.
Insatisfeito com uma forma na tela, László tenta apagar o fragmento, sobrepor outras cores, mudar a dinämica daquele específico retalho de tempo, mas a verdade escapa-se entre os dedos sujos de tinta. A luz já mudou, o verde perdeu a sua essëncia, para se tornar um pouco mais cinzento, enquanto as cintilaçöes solares se espalham agora por uma superfície de água um pouco menor, como rugas na pele, insatisfeitas com o seu corpo.
Algumas nuvens elevam-se sobre o rio, há risos de crianças ao fundo, o rumor da estrada para além dos salgueiros. Farkasvár está quieta e o pintor pensa de novo no barqueiro antigo e na razäo de näo conseguir capturar o cerne daquilo que imaginou. E pensa, enquanto tenta capturar a verdade: A arte acumulou o seu saber entre o final do século XIX e o início do XX, e o resto foi inércia e declínio, fruto dos terríveis acontecimentos que passaram por aqui, como passa este rio.
"Sou um pintor de transiçäo", diz ainda László, a falar sozinho, como se fizesse um discurso académico. "Noutra geraçäo virá uma nova certeza, quando recuperarmos a sabedoria". E a mäo afaga a tela, no cavalete mal seguro sobre a areia escura. E, entre cintilaçöes solares, o pintor tenta adivinhar o rio e o seu entendimento com a luz que nele mergulha; afinal, está tudo ali, e ainda na sua consciëncia, como estava na daquele barqueiro antigo, que noutras circunstäncias, também queria perceber o rio...

Lajos Kormányos
Texto traduzido do original húngaro por Luís Naves
Escrito num teclado estrangeiro

14.8.06

Apelo do moinho - 2

Esta paisagem nunca me cansa. Quer crer que avistei há dias, aqui da janelita virada a leste com’ á porta por causa dos ventos marítimos, né, cheguei a avistar uma águia–de-boné, como vocês lhe chamam, que dizem qu’ é um bicho raríssimo. Nunca me cansa. E olhe que já é o terceiro incêndio qu’ eu choro daqui nos últimos quatro anos, qu’ até a nha senhora do último se consumiu porqu’ ele já vinha monte acima e as labaredas haviam de me lamber a camisa antes qu’ às velas do moinho, eu havia de cá torrar com ele, não o abandonava por nada, foi por um triz.
E depois dá-me gozo rodar o mastro, tá a vê-lo, rodá-lo conforme o vento pede, tanto pode tar um vento do mar como de dentro, já se sabe, qu’ a gente acompanha sempre de modo às velas encararem o vento, e isso é qu’ é estar de bem com a natureza, né, pr’a isso julgo eu que não é preciso ser engenheiro. Isto não é para me meter consigo, que vê-se logo qu’ a doutora tamém lhe puxa às vezes pr’á contemplação.
Houve um estrangeiro que fala português que pelo Natal me disse senhor Benedito Alcains, se eu pudesse levava-o a si e ao seu engenho para onde lhe dessem valor. Ora eu até me ri, diga-me lá ond’ é esse paraíso, se houvesse valor se calhar não havia vento, havendo vento com fartura carecia do valor ou pessoas qu’ o dessem, temos que ir indo assim, uns dias mais conformados qu’ outros, né.
Há vento todo o ano, principalmente no Verão, não falta bom trigo pr’a moer qu’ até há quem lhe chame biológico, por não ter cá químicos, o que não há é condições pr’a eu me governar aqui, né, pois. E o nosso presidente quando passou aí na última campanha até chamou ao meu moinho “indispensável recurso didáctico que desempenhou outrora um papel preponderante numa economia rural marcada pela subsistência”, parece que foi assim, ficaram-me estas palavras, veja lá a minha memória nesta idade. Podia aproveitar para pôr a escrita em dia, como se diz agora, até o neto do Timóteo já me disse Tio Benedito é só querer qu’ eu meto-lhe tudo no computador e faz-se um livro, ma’ eu não vou nessa, qu’ isso ocupa munto as ideias e eu sem estudos e tenho receio dessas doenças da cabeça que agora andam pr’aí, a Arzai, ABCs e tudo o mais.
Eu aproveito d’ a doutora estar aqui, que não sei quando volta, pois, com tanto que fazer lá no seu ministério, e com’ isto felizmente já não é como quando eu era moçoilo que falávamos a dizer o que tava mal e arrecadavam logo a gente a pão e água, aproveito e só peço que lá nas reuniões ou assim, que se lembrem aqui do Alcains e deste moinho a fugir do passado a passadas largas, qu’ o moinho está em bom estado, sempre sem parar, e que não o deixem morrer cômigo, quand’ eu for, pronto, né. É isso que me consome, só isso. E já agora, isto não sendo da minha conta, tá claro, mas qu’ olhem pelo resto da paisagem que se alcança daqui, qu’ a mim já me parece que não é só ao moinho que faltam com a palavra, e digo isto não é para ofender, ma’ isto tá-se tudo a ir embora, hã, né? Adeus, doutora, ficava agradecido se me visse lá isso, gosto sempre de a ver por aqui, pois adeusinho.

12.8.06

Crónica de Farkasvár (I)

Deixem-me contar algumas das histórias dos habitantes desta cidade. Gente que nunca conheci, que gostaria de ter conhecido, que talvez um dia venha a conhecer. Gente como Csilla, a enfermeira que viaja sentada no trólei elécrtico de modelo soviético e que olha pela janela num dia de chuva. Paira na atmosfera uma luz doce, que nos impede de ver os detalhes, pois as cores ficaram diluídas e pálidas.
Vejo a cara dela encostada á janela e permitam-me uma breve descriçäo: Csilla tem pouco mais de trinta anos, certamente ainda näo atingiu os quarenta; possui cabelo louro e tez morena, o que me diz que o louro é pintado. Fugura alta, gestos elegantes;voz agradável, que o excesso de tabaco corrompeu. E noto a tristeza daquele olhar, o que näo é normal nela. Viaja a pensar em estrelas...
Já o disse, é enfermeira, trabalha no hospital central de Farkasvár, o mais antigo, um túmulo de pedra.
Neste momento, enquanto olha a cidade sombria que passa pelo trólei em movimento, Csilla pensa na sua vida sem mudanças.
Sobre ela desceu uma angústia invisível: a sua mäe morreu quatro meses antes, mas näo é isso exactamente que a perturba agora. Talvez seja a neblina que tombou sobre a cidade, transformando cada edifício em lúgubres e melancólicas penumbras. É um pouco disso, também, mas Csilla pensa em estrelas e observa a corrida das gotas de chuva, que desenham rios efémeros no vidro do trólei. E os rios avançam, mudam de percurso, acumulam-se e desfazem-se.
De tal forma Csilla viaja ausente, que näo vë o antigo companheiro de escola, Róbert. Este, ao perceber que ela o ignora, hesita em interromper aquele pasmo etéreo, sabendo que näo se deve pesar sobre a levitaçäo das almas.
Ao sentir aproximar-se a paragem, na Praça Széchenyi, Róbert ensaia um "szervusz", um olá de despedida, mas nada se ouve na trepidaçäo do trólei eléctrico.
Na realidade, Róbert devia acordar Csilla, trazë-la da poeira de pensamentos flutuantes; mas prefere desistir e sair do trólei, adiando assim o inevitável.
Ainda nenhum deles adivinha, mas o destino prepara-lhes um encontro. Num sítio improvável, o concerto ao ar livre da semana seguinte, no momento em que começar a chover. Teräo de sair ao mesmo tempo de lugar em que se sentaram, correr para as arcadas á mesma velocidade e chegar ali ao mesmo tempo, o que näo será fácil, de tal forma säo imensas as combinaçöes de acasos. Se o fizerem em rigoroso simultäneo, väo encontrar-se e, entäo, Róbert poderá dizer o "szervusz" que vem ensaiando.
Depois, viveräo juntos durante seis meses ou seis anos, um caso igual aos outros, que acabará (tudo acaba) sem tragédia ou recriminaçäo, apenas a vaga sensaçäo de perda, quase igual á que ela sente hoje, ao meditar em estrelas e na sua vida sem mudança.

Lajos Kormányos
Traduçäo do original húngaro de Luís Naves
Este texto foi escrito num teclado estrangeiro

Sal

Era do livro do xavier queipo ou da barba dele
lugar onde eu vi um dia nascer um cachalote
e sair uma voz forte de marinheiro que grita
não sei bem se às ondas, não sei bem se aos homens.
Era do livro do xavier queipo ou do passo balanceado
dos seus pés sobre os limos e sobre as cabeças de sardinha,
enquanto no mapa dos controladores de navegação
um pontinho, que é um barco, circumnavega a nossa noite.
Era seguramente do livro do xavier, um livro que ainda não li,
o cheiro de sal a entranhar-se nas minhas mãos tão sujas
o pequeno comércio azul do peixe quando chega à lota
e o adormecer maravilhado pelo peso das lendas do mar.

9.8.06

o azul do corpo

Os músculos da boca a contorcerem-se para falar o que o cérebro quer dizer, para dizer das coisas que o corpo sente; de ser ele próprio a viver do avesso no não-verosímil,

o traço da realidade
-no dia em que fiz seis anos a minha mãe era uma mulher bonita a brincar no quarto com o revolver de trinco automático do meu pai encostado à cabeça

os músculos da minha boca sempre foram desta cor de sangue quente e ao contrário de todos os meninos da creche eu era a única a perceber a importância da boca,

dos lábios,
dos dentes alinhados; a importância de sentir a boca com a ponta dos dedos nos lábios, de olhos levemente fechados durante o toque

as pontas a tocar insidiosamente no rosto, eu a sentir tanto
(a sentir tudo)
- sempre gostei mais de brincar com a minha boca e com os meus dedos do que com os meninos da minha idade; no fundo penso que sempre me preferi a mim

a contorção à maneira de meninos de Taiwan num circo pequeno de leões magros
- tenho tanto medo da sua morte como tenho do escuro, mãe

os músculos da boca e os meninos de Taiwan a falar-me baixinho ao ouvido
- quando conheci a minha mãe a sério ela era uma mulher lindíssima de pele fina que usava a nossa cozinha para fazer demonstrações da Tupperware
na casa que era nossa: eu e ela

(tenho a ideia de ter nascido quando tinha 5 anos, não antes disso)

da cadeira que ficava no fundo cozinha tirava crostas das feridas das pernas com as unhas para que voltassem a sangrar: que na emergência tu fizesses toda aquela gente sair da cozinha e existisses só para mim

para a minha boca,
para os meus dedos,
para o desenho dos meus lábios

a minha mãe a mostrar conjuntos e conjuntos de tupperware que iriam fazer reluzir prateleiras e nos fariam a nós conseguir o dinheiro da renda, da creche, das minhas bonecas
- a minha mãe é a mulher mais bonita que alguma vez os meus olhos viram

e ela haveria de vir: interromperia a sessão, as senhoras sorriam pela forma como me puxavas as pernas para baixo e me ajeitava a saia,


as senhoras a acharem-nos engraçadas às duas e a darem uma atençãozinha especial que no fim do dia pagaria o cinema
tontices engraçadas
( tu ao meu ouvido)
- pára com isso

toda a gente a achar-me uma pequena estranha, demasiado calada no quarto, demasiado quieta, demasiado triste: tu a achares impossível existir alguma coisa de errado comigo por ser tão igual a ti.

6.8.06

Úlceras

Porque essencialmente se fala de uma mulher pequena de cabelo liso, a viver sozinha numa rua estreita com pouca gente que passa: uma mulher demasiado presa em si própria que procura casas de banho públicas de forma a sentir pessoas, a sentir outro corpo para além do seu que conhece, de sentir o cheiro de todos os corpos a tocarem-lhe a pele quente dentro das pernas.

Uma mulher de quarenta anos que corre cada casa de banho de metro da grande Lisboa com uma necessidade humana tão legítima como qualquer outra
- despe as cuecas, senta-se

de loja
de restaurante ou café
- despir-se, sentar-se e sentir

cada espaço cultural ou desportivo
- despir-se, sentar-se e sentir tudo o que os outros corpos lá deixaram: o cheiro a fazê-la feliz

a imaginar que vai trazer para casa nas pernas tudo aquilo que os antecessores sentiram
- o cheiro de cada um imaginado e desejado

na certeza de calar a solidão dos afectos com um acolher de pele
- sentem-se coisas entre as pernas que não se sentem em nenhuma outra parte do corpo

e o cheiro fétido, a sujidade, o nojo transparente dos restos de corpos alheios são coágulos que a fazem afastar-se do arvoredo à noite, o arvoredo que rente à estrada lhe tapa a luz da casa

- eu nunca seria feliz sem os outros.

3.8.06

olhar-te nos olhos num café italiano

não te deixes morrer antes de me ver
uma outra vez, aqui, neste café italiano
e que eu te possa nesse dia dizer, em voz alta,
que a maneira como olho por teus olhos dentro
me faz sentir a afogar-me num mar espesso.

não te deixes morrer antes que o sol
nos possa vir fazer brilhar as peles claras
e que eu te possa nesse dia dizer, em voz alta,
que o tempo que eu imagino calmo e nosso
chega como a maresia à nossa terra.

não te deixes morrer antes que as lágrimas
façam brotar flores sorridentes deste mármore
e que eu te possa nesse dia dizer, em voz bem alta,
que a curva dos meus dedos sobre a tua cintura
é o círculo perfeito de um amor que ainda subsiste.

in os fracos escrevem poemas de amor, Veneza, 1957.

1.8.06

Pudesse eu viver sem os teus olhos de fósforo e afinal descansar.

Deitar-me sobre as folhas caídas dos fetos arbóreos migalhas de bolacha sobre a pele atraindo as formigas.

Pequenas cócegas.

Pudesse atravessar outro corredor que não me leve ao teu incêndio e abrir a porta para uma piscina de água muito muito doce.

Incongruente como um sonho daqueles que regressam.

Pudesse eu apagar esses lábios e desenhar outros com aqueles lápis de borrachinha na ponta mordiscada pelos nervos.

Esses anões de passinhos rápidos invisíveis correndo entre as tuas pernas.

Tempos assim

Parece que em tempos ele se arrastara por um período difícil que começou por ir assim-assim, evoluiu lentamente para o malzinho, até finalmente correr mesmo mal. Não corria, na verdade: estagnara numa lagoa turva, de tanto secar convertida em deserto, debaixo de um sol cínico que o fundia a ele, ofuscava os outros e confundia tudo.
Nesse tempo de deambulações cegas e circuitos fechados, a solidão colou-se-lhe à pele pelo lado de dentro, alojou-se-lhe nas mucosas. E o sol era tanto, o sol do deserto em que caíra, que houve quem estranhasse a sua ilusão de destempero.
Nesse tempo assistiu perplexo a uma floresta de muros que despontava à sua volta. Cada muro era erguido a tijolo e não se via para lá dele; cada muro tinha por trás um velho amigo aí aninhado com o seu mundo presente, um amigo velho impedido de participar na vida dele pelos muitos afazeres da própria vida.
E quanto mais lhe balançavam os pilares básicos da existência, quanto mais isso, mais os amigos saíam num só passo de trás dos seus muros de brioso stress, assumindo enfim as suas caras de ausência e, como luzes numa cidade noite fora, começavam a apagar-se sucessivamente, um após outro e ainda outro. Aquele ali ao fundo, depois esta num último sorriso, outra aqui mais perto, outro ali, ali, ali…
Cada vez que um velho amigo, um amigo velho ameaçava apagar-se, cada vez que a luz de uma janela esmorecia, ele corria aflito a espevitá-la com um sopro leve. Mas aflição e leveza não se entendem, e em menos de nada o deserto com a sua luz esmagadora era um bairro escuro sem luzes nas janelas.
Foi em tempos assim, em muitas noites sem lua sobre um alcatrão frio, como antes sob o sol em dunas fugidias, que ele viveu sem bússola, chamou por uma âncora, perdeu-se de si de tanto procurar os outros.
E como remédio só lhe restou desfocar o olhar de cenários extremos, liberar as luzes para que brilhassem além de cada muro, longe ou perto daquele bairro ali.
Parece que nesse tempo, então, tacteou em si palavras assim.