31.5.06

conversando às 5 da manhã com uma chávena de chá

éramos daquele tempo em que diziamos um ao outro
vamos criar uma casa na árvore onde podemos juntar
os nossos amigos todos que fazem coisas bonitas
e depois a árvore transforma-se em estrela
e nós sorrimos todos muito muito.

éramos daquele tempo em que diziamos um ao outro
vou esticar a mão da minha janela à tua
atravesso o mar inteirinho cheio de carros
e depois o mar transforma-se em jardim
e passeio por lá com as minhas saias desfocadas.

éramos daquele tempo, sobretudo daquele tempo
em que respiravas calma ao meu ouvido
enquanto eu dançava uma música só imaginada
e depois a minha cabeça ganhava asas com o corpo
e já nem eu nem tu nem nada, só mesmo estrelas,
estrelas.

30.5.06

Ballad of a sweet young man

There was a time
I trusted everyone,
the world was all mine
and still remained some.

I travelled light
with my heart wide open,
never had a fight
or a bitter word spoken.

Back on that time,
I didn't know love.
A girl to call mine
or supper in the stove.

I figured everything
would come when I needed.
I just had to sing
and rip what was seeded.

I don't really regret
any one of those days,
I sure don't expect
they'll return on my prays.

But I can't help to ask
what really has changed,
and the reason this mask
is feeling so strange.

29.5.06

fotografias - 1

este
aqui
sou
eu
calado
de
mão
suspensa
a
dizer-te
adeus
enquanto
tu
levantas
voo
com
a
tua
saia
vermelha.

27.5.06

De como o gato Iskra (Faísca) salvou a Humanidade

O velho Mikhail Petrovitch olhou para a brancura da neve, lá fora, e suspirou profundamente. Pareceu perder-se nos seus pensamentos, e só então me dei conta da importância da minha pergunta sobre o que realmente acontecera naquele dia confuso de Abril. Depois, bebeu um pouco do chá que tinha sobre a mesa (notei os seus dedos extremamente finos) e sorriu com uma recordação qualquer. Era como se eu já não estivesse ali.
“Em que está a pensar, Mikhail Petrovitch ?”, perguntei.
O velho sorriu ainda mais. Quase ria:
“Num gato! Chamava-se Iskra e fazia justiça ao nome, parecia uma faísca a correr pela dacha do secretário Korillov. E a sua pergunta anterior sobre aqueles dias da transição de poder fez-me lembrar aquela bola de pêlo ruivo que corria pela casa. O gato que salvou a Humanidade”.
E ao dizer isto, largou uma genuína risada. Depois, ficou em silêncio, e ouvia-se a imensa tranquilidade do mundo. A floresta, do outro lado da estrada, um vento que se erguia sobre a neve, a madeira que estalava no calor da casa.
“O que não percebo, Mikhail Petrovitch, é a ligação entre o gato Iskra e a transição de poder. E como é que o gato salvou a Humanidade?”, perguntei, incrédulo, a pensar que estava a ser gozado.
“Onde é que íamos?”, perguntou o velho. “Ah, a transição! Portanto, depois do secretário-geral ter morrido, houve um vazio de poder durante duas semanas. Os membros do Politburo estavam em luta uns com os outros, excepto Korillov, que teve a liderança durante a transição e, portanto, o poder de escolher o sucessor... Enfim, você já sabe isto tudo... O que não sabe é que houve uma noite de pânico no dia 22. Korillov estava na dacha. Eu também, já que era o secretário pessoal dele. Deviam ser uma cinco da manhã quando chegam três outros membros do Politburo, acompanhados de vários generais. Traziam a mala dos códigos nucleares e pareciam agitados, sobretudo o marechal Getmasov, que era meio paranóico e extremamente incompetente. ‘Temos de atacar antes que eles nos esmaguem’, vociferou o marechal, quando todos entraram no gabinete de trabalho de Korillov, que ainda estava de pijama e parecia patético no seu espanto com aquele alvoroço. Já nem me lembro bem qual era a questão, mas parece que houve um erro de avaliação sobre o que se passava nos silos atómicos dos americanos. Enfim, os generais estavam convencidos de que haveria um ataque nuclear dos Estados Unidos no prazo de uma hora. E gastaram esse tempo a discutir se aquilo era assim, a pedir mais informação. Faltavam dez minutos para o alegado ataque e o clima na sala era de histeria. Todos gritavam, Korillov hesitava. Então, houve uma espécie de intervalo e os espíritos pareciam ter acalmado, como se houvesse ali a iminência de uma grande decisão. Em certo ponto, o secretário Korillov não aguentou mais e vacilou, aceitando um ataque preventivo... Naquela altura não sabíamos, mas uma guerra nuclear seria equivalente ao extermínio da Humanidade... Enfim, alguém se esquecera da mala dos códigos em cima de uma mesa, procuraram-na com o olhar, e lá estava Iskra, a bola de pêlo ruivo, como um diabinho, em cima da mala, a dormir muito refastelado. O marechal Getmasov precipitou-se para a mala, decidido a enxotar o gato, mas foi nessa altura que as coisas se tornaram verdadeiramente alucinantes. Alguma coisa irritara Iskra, que se eriçou contra o marechal, bufando-lhe, furioso com a interrupção do sono ou com algum gesto. Estávamos nove pessoas na sala e ficámos estarrecidos. O marechal fez o movimento de quem procura a pistola e teria disparado, mas os militares entravam desarmados nas dachas dos membros do Politburo, cuja segurança pertencia à KGB. Eram regras de segurança do tempo de Stalin. O marechal tinha estado em Estalinegrado, não era uma gatinho inofensivo que o ia travar. Iskra levou um valente safanão e o Getmasov abriu a mala dos códigos, virou-se para Korillov e disse: ‘Tem de dar a ordem, Stepan Stepanovitch”. Korillov ficou a olhar para ele, muito branco, sentado, ainda no seu pijama, com ar indefeso, mas rendido, pronto a dar a ordem. De súbito, Iskra saltou-lhe para o colo e todo o movimento se suspendeu na sala. O gato esticara-se, com as patas de trás sobre as pernas do dono, as da frente no peito dele e o focinho avançado sobre a sua cara. E Iskra começou a lamber a cara de Korillov, a lambê-lo freneticamente, como se pedisse para esperar mais um pouco. ‘O gato não tem medo’, disse Stepan Stepanovitch Korillov. E segurou Iskra, segurou-o com suavidade, dando-lhe festas no dorso, depois recostando-se na cadeira. ‘Esperamos’, ordenou o secretário. O marechal ainda tentou convencê-lo, implorou durante alguns minutos e, então, chegou aquele telefonema que esclarecia todo o mal-entendido. Tinha sido uma ilusão, não havia nenhum ataque americano, apenas más interpretações de informação electrónica. Dias antes de morrer, Korillov disse-me que no momento em que Iskra lhe saltara para o colo tinha pensado em mil coisas diferentes, mas lembrara-se da sua neta e sentira, por um instante, uma presença superior no seu colo. Mas repare que ele não chegou a usar a palavra Deus... Como é que os americanos chamam a isto, Guerra Fria, não é? Pois bem, digo-lhe, meu caro, se nessa Guerra Fria houve autênticos heróis da União Soviética, aquele gato foi um deles”.
Mikhail Petrovitch calou-se. Ficou pensativo um bom bocado. Olhou para a rua, distraído. Talvez pensasse na sua carreira falhada, no seu futuro breve, no poder dos acasos ou na loucura dos homens. Então, quebrando a pausa, concluiu:
A propos, escreva o seu livro, mas você nunca poderá contar esta história!”

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24.5.06

menção horrorosa

o poeta recebe uma menção horrorosa e guarda-a
dentro do casaco. era um jantar de gala
e alguns meninos sorriam por detrás de copos de champanhe.

o poeta tem a cara triste e a barba feita - parece-se
com um secador de cabelos que deixou de funcionar.
os copos fazem tchin tchin e os meninos sorriem.

o poeta e o casaco de poeta e a menção horrorosa,
alguém a vender rosas pelo meio do jantar e o presidente
da associação a tirar macacos do nariz no fim do discurso.

vamos recomeçar: o poeta está de chinelos e toca o telefone
[alô! queremos convidá-lo para o jantar da associação - mas eu
nem pago as quotas! - não faz mal, venha e deixe a carteira em casa]

a meio da sobremesa, o poeta recebe a menção horrorosa e
guarda-a dentro do casaco, no bolso vazio da carteira. volta a
sentar-se e pede um café e um uísque. dá as boas noites antes de voltar a casa.
Enquanto escreve, a luz atrás das suas costas
e uma leve aragem brincam, muito juntas,
em espirais de poeira cintilante.

Enquanto a mão repousa, calejada,
um pequeno insecto atravessa palavras
ainda por reler.

Sem pressa nem receio, percorre a folha
e nada encontra entre as suas margens.

O homem ignora o pó atrás de si, o insecto à sua frente.

Ergue a cabeça,
ajeita os óculos com um tique na ponta do nariz e,
dir-se-ia,
por momentos permanece em outro qualquer lugar distante.
Como quem diz: «Não estou aqui. Não sou este».

Terminada a pausa, retoma a sua escrita.

22.5.06

Meds

Dizem que já conseguem viver um sem o outro, que têm cortinados da sala diferente, que vivem vidas antagónicas.
Juram que já são felizes .

Dizem que já não sentem a falta um do outro na cama, que já não experimentam arcas frigorificas juntos, chãos de sala ou casas de banho públicas como faziam:
diz-se que são outros.

Dizem que se passarem um pelo o outro na na rua , um mudará de eixo por escolha pessoal intransmissível:
diz-se que são civilizados, que se sabem tratar.



Dizem que têm outras pessoas, que casaram e arranjaram filhos
- ela arranjou outro: ele arranjou outra


e que as festas foram grandes com as familias todas.
Diz-se que moram perto um do outro sem saberem.
Dizem que da varanda de um se vê a varanda do outro: dizem que no outro dia se cumprimentaram na secção do arroz no supermercado da avenida.
Dizem que iam os dois com as respectivas famílias.
Dizem que primeiro se olharam nos olhos como se os olhos de um já tivessem sabido a linguagem do outro, diz-se que esticaram as mãos, que as apertaram, diz-se que parecia que nunca um dia existiu em que aqueles dois se houvessem despido para o outro:
diz quem viu que pareciam autênticos estranhos.


Diz-se que a pele dela já não dava sinais da presença dele, dizem que ele desviou o olhar:
dizem que o marido dela apareceu, que ela os apresentou educamente.
Dizem
- e pouca gente sabe mas dizem

que ela olhou para trás quando se separaram: dizem que terá sido um olhar estranho.
E dizem
- dizem

não tenho a certeza mas dizem
que ele olhou para ela também.

20.5.06

Passeio com Átila

Da obscura bruma, cinzenta e fria, saiu aquele par de silhuetas. O rapaz era alto e magro, vinha agasalhado com um cachecol velho que destoava do sobretudo. Pela trela, o cão rafeiro, com costela de pastor-alemão. Os dois desceram devagar a rampa asfaltada e o homem escolheu um banco de jardim, onde se sentou, apesar da forte humidade. Depois, largou o cão da trela e disse, em voz alta, como se conversasse:
“Podes ir, Átila, mas não te afastes muito”, e admoestava o rafeiro com o dedo espetado.
A princípio, o animal largou por ali fora, deu três pulos no relvado, cheirou algumas árvores, depois voltou para junto do rapaz, que meditava, a observar o espaço confinado no nevoeiro, as copas de arvoredo no fim do descampado do jardim, as folhas amareladas das árvores mais próximas, a luz que tentava romper a barreira das nuvens.
O cão ficara em frente ao rapaz, sentado sobre as patas traseiras, à espera, a observar o que faria o humano:
“Queres saber como é papar a velhota...”, disse o homem, para puxar conversa.
O cão moveu a cabeça para o lado; talvez para escutar melhor, talvez para tentar compreender a ordem dos sons que o humano fizera.
“Pois, meu amigo, tem os seus problemas”.
O focinho avançara ligeiramente, como que numa interrogação.
“Papar a velhota, digo...”
O cão abriu a boca, descontraíra, tinha a língua de fora...
“Tu deves achar esquisito. Apareci em tua casa, assim, sem aviso, tu percebeste logo ao que eu vinha...Mas, no fundo, não podes compreender porque estou com a tua dona...”
O cão ficara ainda mais atento, o olhar interrogador, insatisfeito...
“Ela controla tudo, sabes. Divorciada, sem filhos, tem dinheiro. E já chegou à idade em que as mulheres se estão nas tintas para as aparências, podem namorar com um tipo como eu, que sou um solteiro desempregado, ainda por cima ambicioso. Olha para o sobretudo”, e mostrou a qualidade do tecido ao canino, que cheirou o casaco, “boa matéria, um presente, foi ela que me comprou...”
O homem recostou-se melhor no banco do jardim.
“Achas mal? Tu também dependes dela...”
O cão de novo tinha a língua de fora, como se concordasse...
“Gostei de a conhecer. Um dia, claro, vou-me embora...Ela vai chorar umas semanas e depois procura outro matulão como eu. Ou talvez nem chore. Aponta o dedo e diz que a porta é serventia da casa. Temos vinte anos de diferença e ambos sabemos que isto não é para casar. O ideal seria ela arranjar-me um emprego. Até esse dia, dá-me presentes...Não achas bem!!
Era uma afirmação. O tom de voz mudara, tornara-se áspero. O cão apercebera-se da transformação e olhou para o rapaz, à procura de pistas para compreender o motivo da transição. Depois, distraiu-se, olhou para o lado e rosnou, na direcção do vazio. Houve uma pausa e, do nevoeiro surgiam dois vultos; eram dois homens jovens, que também desciam o caminho asfaltado no meio do parque público. Vinham a conversar. Aproximaram-se. Pararam junto ao rapaz do sobretudo. Dois skinheads.
“É feroz, o rafeiro?”, perguntou o primeiro skin, apontando para o cão.
“Chama-se Átila, portanto, deve ser mau como as cobras”, respondeu o rapaz.
O segundo skin acocorara-se ao lado do animal. Começou a fazer-lhe festas no pescoço e na nuca.
“A mim, parece-me manso”, disse.
Ficaram os quatro ali um bocado. Então, o segundo skin foi correr com Átila no relvado; o primeiro ficou de pé, ao lado do rapaz do sobretudo:
“Tu não trabalhavas naquela fábrica que fechou?”, perguntou o skin.
O rapaz fez um gesto, a dizer que sim.
“Eu também. Não te lembras de mim? Trabalhava na secção de polimento. Mas, na altura, usava cabelo comprido...”
“Ah, sim! Lembro-me...E arranjaste emprego?”
“Não, ando pra qui...Tu, é que tás a subir na vida, casaquinho à maneira...”
“Nem por isso...Tenho uma velhota por conta... É professora e tem narta”
“Dá-te umas lições...”
“Nem por isso...”
“O cão é teu?”
“É dela. Eu só o vim passear.”
Átila e o outro jovem tinham regressado. Os skins foram embora, mas só se despediram do animal, com grandes festas no pescoço, no dorso e amigáveis palmadas na nuca.
(...)
O parque parecia ter mergulhado numa espécie de intervalo, a cidade imperceptível atrás da névoa densa e os pensamentos a fluírem sem nexo.
“E aqui estamos nós os dois sem termos para onde ir”, disse o rapaz.
E o cão gemeu um pouco, como se entendesse o humano; inclinou a cabeça, como se tivesse pena dele; abriu muitos os olhos, como se quisesse dar-lhe força.
“E tu aqui a perceberes tudo o que eu dizia, meu malandro...”
E, depois, com um riso breve: “vamos pra casa, Átila”.


Nota: Este conto tem forma de resumo e ritmo errado, a exigir mais pormenores, mas paradoxalmente ficou demasiado longo para o tipo de forma adequada a blogue. Prazeres Minúsculos é uma espécie de oficina de escrita, com objectos concluídos e outros não terminados, como é este caso. Não consegui fazer este post mais pequeno, pelo que os leitores necessitam de dupla paciência, a de imaginarem os hiatos e a de suportarem a extensão...

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laranjas

o meu amor come laranjas

laranjas, amargodoces, laranjas

o meu amor, o meu amor, laranjas

de todas as cores, laranjas, de vários sabores

laranjas, o meu amor, come, come

o meu amor come laranjas

da sua boca escorre sumo e sumo de laranja

sumo e sumo e sumo e sumo e sumo de laranja

o meu amor, o meu amor come e come

laranjas laranjas laranjas laranjas laranjas

amargodoces, laranjas, quem dera que fosses

laranjas, para o meu amor, o meu amor te comer

com folhas de laranjeira pousadas nas orelhas.

19.5.06

adília, mon amour

1.
a adília lopes enviou-me um sms

2.
está um dia tão bonito

3.
eu respondi-lhe com gosto

4.
não sabia que tinhas telemóvel

5.
sou a dama-de-espadas,
posso voar,
se me apetecer

6.
tu querias foder
foder perdidamente

7.
estou perdida aqui
salvas-me?

8.
estou perdido em mim
mas alguma coisa
se há-de arranjar

9.
a adília lopes enviou-me um sms

10.
estou apaixonado
queres casar com a carochinha?

11.
não sou o joão ratão,
não gosto de sopa,
mas cairei no caldeirão
se tu quiseres.

18.5.06

Recortado pela filigrana do ouro, o ícone azul celeste.


Sobre a cómoda, o azeite incendiado da lamparina.


Assim adormecia em criança, no tempo em que havia Deus


e um Anjo entrava na minha alma, a horas certas,


disfarçado de avó e beijos de passarinho.

Protège-moi







Hospital Psiquiátrico do Infulene, Lourenço Marques, 18 de Maio 1962






eu sou coisas dentro de mim que nunca disse: nunca os meus lábios se moveram para te dizer
para te dizer
- porque eu sempre te quis dizer
(olha para mim cá dentro que eu sou isto: olha para mim do avesso)


soubeste acenar-me e, poisando o jornal olhei para ti atentando que o teu riso não é mais o mesmo:
mascara-te a cara como se alguém em ti se risse por ti.

eu queria negar tudo, ia jurar a minha consistência nisto como uma mousse de manga a dormir quieta no protecção frigorífica:
ia agora mesmo começar a dizer que a tua pele se tornou áspera
áspera de velha, áspera de seca

e que te crescem silêncios venenosos pelos poros da cara, à maneira de morangos apanhados que temos de lavar antes de levar à boca.


Um dia prometo-te que levo-te à boca.

17.5.06

Uma amizade

Daniel enviara-me um sms a dizer que a amizade valia mais do que tudo o resto, mas apaguei a mensagem. Os meus dedos passaram depressa por três teclas e já estava, foi como se as palavras tivessem morrido e como se o desaparecimento daquelas letras (agora sem nexo) diluísse a imagem que eu ainda tinha dele. Algo se fragmentara na minha alma, após o gesto, mas a perda de consistência não era um acontecimento preciso, apenas uma sensação vagamente desagradável, a que se tem quando algo termina.
Só então assentou a ideia concreta da crueldade. Ao suprimir a mensagem, parecia ter iniciado um processo irreversível de apagar Daniel da minha memória.
Lembro-me dele, ainda antes de sofrer a depressão. Era um rapaz franzino e calado, um pouco melancólico, com óculos redondos pendurados no nariz aquilino. Durante meses, fomos colegas de trabalho, criámos uma amizade e formámos uma bem sucedida dupla de solteirões na noite de Lisboa.
Ele foi um dos convidados no meu copo-de-água, quando decidi mudar para a equipa dos casados. Talvez ele não se recorde particularmente da cerimónia, bebera demasiado, mas às tantas estava agarrado ao meu smoking, quase a rasgar o tecido, a dizer que sentia uma espécie de inveja, tão bonita era a minha noiva.
A beleza engana muito, agora sei disso. E as noivas têm ciúme dos melhores amigos, essas figuras sem lugar. Três é uma multidão, como se costuma dizer. Eu tinha um novo emprego e a minha vida mudara, mas esse primeiro casamento (que durou quatro anos) foi um período sufocante e obsessivo.
Enfim, havia muito em que pensar, por isso também mudara a minha amizade com Daniel. As nossas vidas foram divergindo, mas o processo deu-se com lentidão. Encontrávamo-nos por vezes, mas tínhamos cada vez menos sobre o que falar, como se esse afastamento fosse sobretudo coisa mental. O terreno comum encolhia sob os nossos pés, mas isso nada tinha de trágico, era um facto aceite de maneira conformista. A amizade transformara-se em algo de dinâmico, como se fosse um mar, cujas metamorfoses não são imediatamente visíveis, mas apenas pressentidas. Sombras que passam, cores que mudam, água que se agita, a paisagem mudando em pormenores e minúsculas subtilezas.
Quando o Daniel teve a depressão, a nossa amizade evoluiu de novo. Nunca verdadeiramente me perdoei por não ter reparado no estado em que ele estava. Emagrecera, desaparecia da vista durante semanas (e eu não lhe telefonava durante semanas); e, quando nos encontrávamos, parecia mais sorumbático do que era habitual, de branda palidez; sempre apressado, para recolher à sua solidão. Eu não entendia a natureza da doença e, quando o tentei ajudar, fazê-lo sair do estado de tristeza, ele afastou-me bruscamente. Embora esse gesto fosse consequência do mal, ofendi-me. O afastamento durou seis meses. Quando reencontrei Daniel, por acaso, na rua, ele contou-me o inferno que passara naquele período.
Nunca mais seria o mesmo. Transformara-se numa pessoa demasiado controlada, que evitava multidões, com fobias constantes. Perdera o emprego antigo, empobrecera, enfurecia-se, não conseguia manter relações estáveis. Por isso, Daniel era um solitário. Ficava mais alegre quando estava comigo, mas fui-me afastando dele. E não consigo definir as razões.
Ele embaraçava-me, talvez. A nossa amizade morria, devagar, e o elo fraco da ponte que se desfazia era eu.
Nessa véspera de Natal, Daniel enviou-me uma mensagem a dizer que a amizade era o mais importante. Apaguei a mensagem e, nesse gesto, apaguei sem remorso uma parte da minha vida.

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16.5.06

Um "work in progress" à procura de rumo

(aceitam-se sugestões, comentários, etc.)

O desenhador de mapas

Ladislau Ferreira terminou de desenhar o mapa e telefonou para os directores locais. Quanto mais depressa fosse posto em prática o novo projecto, mais rápido ficariam operacionais as fronteiras. Os deportados seguiriam caminho; os locais conheceriam o seu país de origem.
Terminados os telefonemas, exaustivos e fatigantes, Ladislau recostou-se na sua velha cadeira onde há muitos anos encostava as costas doridas de tanto mapa. Levantou a carta geográfica com os braços abertos para absorver as linhas marcadas a tinta-da-china, mas rapidamente os deixou cair, incapaz de os suster sozinho.
Contou mentalmente os anos no departamento de desenho de mapas: 42. Suficientes para saber o trabalho de cor, nunca bastantes para evitar a sensação de angústia perante a obra efémera. E as cicatrizes ficavam cada vez que um mapa se deitava para o lixo, ultrapassado por novas negociações entre facções no terreno. Desde que os Governos assumiram as fronteiras como divisões móveis, sujeitas a constantes actualizações, os seus mapas tinham variabilidade extrema: poderiam durar anos, meses, semanas, mesmo dias ou – felizmente, apenas uma vez – somente horas.
Perante a volubilidade, deveria ter-se deixado do trabalho à mão, seguir a corrente, usar o computador e compor e apagar em impulsos electrónicos. Em vez disso, insistia, teimoso, no desenho dos traços sobre o papel até os olhos chorarem por trás dos óculos presos no nariz gasto, os dedos escurecerem da tinta (dir-se-iam pertença de outro) e lhe doerem, mesmo com a insensibilidade nas zonas que envolviam o marcador.
Ladislau pertencia a linhagem de desenhadores cartográficos com séculos de ramificações genealógicas, tanta tradição dava-lhe peso ao currículo, alguma arrogância e responsabilidade excessiva no respeitar da herança familiar. Desenhar era prazer, destino, necessidade, tortura, imposição. Em suma: vida.
Nesse dia, em tudo igual aos outros, sentia-se pior. Sentia pontadas na zona lombar, os olhos inchados, irritados, como se uma eterna poeira lhe arranhasse a córnea, cãibras nos dedos. Além da indisposição que lhe tomara de assalto todo o corpo, sentia náuseas e tonturas. Sentado na cadeira, Ladislau parecia uma marioneta abandonada pelo seu mestre.
Só que ele não era de madeira, nem estaria sempre pronto a ganhar vida nas mãos do manipulador, nem sequer se levantaria puxado por cordas. Sentia a vida chegar-lhe ao corpo a pingos vertidos por torneira mal apertada. E essas gotas mal lhe lambiam o coração, secavam, e o anseio por novas gotas cravava-lhe pontadas no peito.
Ladislau que nunca fora de exageros hipocondríacos, sentia uma tristeza profunda, nascida de um poço seco no seu corpo, correndo lentamente como fluxo arrastado pelas veias, atrasando-lhe os pensamentos no cérebro, isolando como reais somente aqueles que lhe consumiam o restante da existência.
Ladislau morria nas margens de um mapa com fronteiras de tinta-da-china.

Imitação do espelho, quando partido

1.
as mãos são sempre frágeis demais
quando
deixam cair coisas no chão

2.
lembro-me de ser pequeno
e deixar cair
uma maçã na areia

3.
lembro-me de ser pequeno
e deixar cair
um gelado na calçada

4.
as mãos são sempre frágeis demais
mesmo quando
seguram espelhos

5.
as mãos frias
quentes
frias
quentes
frias
quentes
frágeis

6.
as mãos são parte de um mistério
de reconciliação
entre as pessoas
que se amam

7.
os espelhos não
muito menos
quando se partem

8.
esta semana deixei cair
ao chão
o espelho grande do corredor
enquanto tu
limpavas a parede

9.
as mãos são sempre frágeis demais
quando
as coisas acabam
partidas no chão

10.
sejam espelhos

11.
seja o amor.

15.5.06

Silogismos não, se faz favor

1.
Não é possível coleccionar cerejas. Elas definham, encarquilham
e ambas as palavras são feias de se ouvir, convenhamos.

2.
As cerejas são como beijos.

3.
Não deveria pois ser possível coleccionar beijos. Ou guardá-los para sempre. Mas há quem faça uma coisa e outra. Quem nunca se arrependa.

13.5.06

chama-me outra vez

Encomendei à sorte o teu número de telefone
e tudo o que ganhei foi um número indisponível.
Sim, eu sempre soube muito bem do deve e do haver
enquanto forma modernista de dar tampas
a gajos não assim tão bonitos que valha a pena sair com eles à noite.
Mas mesmo assim, uma chamada telefónica
é coisa tão pouca, que pedia o telemóvel ligado
mesmo depois das duas horas da manhã.

E tudo o que perdeste foi a minha voz, doce,
num ligeiro rumor alcoolizado.

12.5.06

Balada do gato e do louco

Quando naufraguei na banheira, nem a toalha salvei. Senti os dedos enrugados muito antes do sangue se misturar com a água: já não tépida; fria. A forte dor no pé arrojou-se contra os azulejos brancos e trouxe no ressalto um par de lágrimas. E outras mais vieram: chorei. Ou molhei simplesmente a cara, quando as pernas se sentiram impedidas de suportar o corpo. E no jorro fundiu-se o desmaio e as pálpebras e a torneira e o ralo por onde (imagino) continuou a escorrer a água levemente corada.
Acordei repousado a muitos quilómetros de distância. Em cama visitada antes e à qual sempre temera regressar. A oportunidade de me espreguiçar suplantou a repulsa que apenas gemeu de mansinho enquanto atacava o pequeno-almoço. Delicioso café. Com o gato estabelecera regras. Pequenos jogos solitários a dois. Enquanto ele tomava a maior parte da casa eu tocava o silêncio. Os dois – gato e silêncio – bastavam como quotidiano. Supérflua qualquer outra manifestação da contagem do tempo.
Na cama, posteriormente ao episódio da banheira e farto de café e torradas, dei-me conta da perda do silêncio. Num dos tímpanos – difícil lembrar se o direito, se o esquerdo – sentia um incómodo ruído, vibração de centenas de botas militares marchando ao longe num piso de madeira. E a casa enchia-se de centenas dessas botas engraxadas de militares engalanados. Nessa casa aonde sempre temera regressar.
Perdera o silêncio e um gato: deixara de viver o mundo dos surdos. Habituara-me a ser solitário e enfermiço: que poderia fazer agora com tanto ouvido? Que poderia fazer agora senão encerrar-me para sempre no mundo, sem nunca, mesmo nunca, sair a caminhar com o gato e o silêncio pela casa. Condenado a ficar lá fora, podia ver como o gato rasgava com as unhas o reposteiro. Queria sair lá para dentro e lembrar-lhe as regras estabelecidas, ao invés depositei raízes numa cama essencialmente branca, aceitei visitas de uma hora aos domingos, centenas de comprimidos por dia e um fio de baba sempre a escorrer pelo queixo. As mulheres de branco não chateiam, se ignoras a estranha propensão de te tratarem como louco. Mas não posso deixar de sentir falta do gato e do silêncio.

10.5.06

Adeus encontrado na gaveta

Adeus. Sê feliz.
Devemos amar na vida
a quem se quis.

Adeus. Procura luz.
A que existe para além
do que seduz.

Adeus. Procura paz.
Em ti está a força
de seres capaz.

Adeus. Em despedida,
que reencontres célere
a alegria perdida.

Adeus. Um abraço.
Não tenha nos teus olhos
a sombra espaço.

Adeus. Último desejo.
Que a minha alma esteja mesmo
onde não vejo.

9.5.06

abecedário

a.
queria aprender um abecedário novo

b.
um qualquer em que a letra primeira
fosses tu

c.
e não houvesse letra segunda,
apenas outra primeira,
eu

d.
queria aprender um abecedário novo

e.
nada destas coisas de copiar alfabetos
de tipos que só vestiam de branco

f.
o meu abecedário tem todas as cores

g.
a minha e a tua cor
juntas

h.
queria aprender um abecedário novo

i.
daqueles que crescem nas árvores
e nos chegam a casa pelas ondas do mar

j.
daqueles que sabem a chocolates
e a sumos naturais

k.
daqueles que têm muito olhos
muitas línguas
muita gente

l.
daqueles que se sentem bem nas coisas
começadas por mim e por ti

m.
queria aprender um abecedário novo

n.
tirá-lo do bolso como um mágico tira flores

o.
fazê-lo voar como pombas brancas

p.
com orelhas grandes como os coelhos

q.
queria aprender um abecedário novo

r.
que pudesse ser soprado

s.
que pudesse ser corrido

t.
que pudesse ser soprado e corrido

u.
queria aprender um abecedário novo

v.
e queria que o aprendesses também

w.
como se aprendem as coisas mais simples

x.
um mais um somos nós

y.
uma carícia provocando um sorriso

z.
as letras todas juntas para te dizer
queria aprender um abecedário novo

8.5.06

Poema que nem parece meu, para ser lido numa língua morta

O barqueiro não aceita moeda nova
e nós delapidámos o ouro.
Atravessamos a nado,
mãos e pernas abertas ao estilo dos batráquios:
Croach, croach,
queixumes lançados para a invisível margem.

Já nem merecemos o desprezo dos deuses.
Já não sabemos perder a razão.

Na parede da caverna, em sessão contínua,
projecta-se a entrada dos operários na fábrica.
Repõe-se para sempre a verdade histórica.

5.5.06

Super Fulmina

(...) como se por baixo da porta do quarto nascessem sanguessugas rectangulares azuis,
sanguessugas azuis de gordura a passarem a porta escura na espessura simétrica da chuva lá fora
-a chuva lá fora corrói de morte

ou como se o pão do pequeno-almoço se enlarvasse;
como se o pão do pequeno-almoço tomasse a forma amorfa de uma larva sorridente a dizer para a boca humana
-mastiga-me

e alguém a mastigasse.



como se o espelho da casa de banho me derretesse o rosto sem querer
e eu tivesse pena de mim e me tentasse apanhar com as mãos, líquida no branco esmalte do lavatório

ou como se a estação de metro me engolisse;
como se as linhas de metro me interpelassem baixinho, em voz doce dissessem:
- salta, salta

como se eu saltasse perfeita para a morte por electrocussão e me assistisse fulminada.

como se o chão pisado me mordesse os pés e eu não conseguisse fugir porque por debaixo de mim tudo era boca; porque tudo no chão era eu a fugir

como se o leite branco de beber ao lanche fosse o resultado analítico de uma vaca muito velha que vive uma vida muito triste, num prado muito longe: ou, o esperado

como se eu e tu fossemos os dois um Alka Seltzer a respirar pelo nariz presos num simples copo de àgua.








dos cadernos riscados (1)

1
a minha manhã
e outra vez o sol
o sol a arrumação
dos teus olhos
os lençóis da cama
a minha manhã

2
a minha manhã
o telefone que toca
a voz da vizinha
os teus dedos em
mim na cama ou
a minha manhã

3
a minha manhã
a tua pele fresca
um beijo muito longo
o meu calor e o teu
calor e o meu calor
a minha manhã

4.5.06

A ilha

Eras da cor do ocre ao fim da tarde.
Nenhum nome se parecia com o teu
e em redor as garrafas vazias esperavam a chuva.

Entretanto, ao longo da ilha, a palavra «olvido»
escapulia-se na noite.

Eu abria as mãos e encontrava terra
ao acordar. Nesse instante,
a felicidade irrompia pela janela aberta
e os meus olhos fechados.

Pequenas pedras, pequenas conchas…
Mesmo a sombra emite luz, mesmo ela.

3.5.06

dos cadernos dos Jisei (5) - término do ciclo da morte

1
é preciso que se diga
azul
quando o sol nasce

2
crescem ramos dos meus braços
o orvalho saciou-me

3
a minha doença
vive
e és tu

4
no silêncio do meu quarto
respiram os teus cabelos

5
dos dedos tiraste o colo
onde me encontraste

6
e eu queria dizer morte
mas cresciam borboletas
de dentro da minha boca

7
uma só borboleta
e nasce em mim
a primavera
Continuo à espera.
Há, debaixo da terra,
aí onde morte e vida se alimentam, um movimento.
Imperceptível, inexorável, surdo.
Há, também, um livro que se escreve por si mesmo.
Uma só palavra que cresce e continua a crescer,
em direcção ao Sol.
Não é claro o que digo porque não sei.
De onde vem o crepitar das mãos,
ou os minúsculos sons que ecoam
nos espaços vazios do coração.

2.5.06

Recordação

Nos consultórios não há espelhos. Se houvesse, teria visto as pregas de pele que deformavam o seu corpo outrora liso, agora pouco mais do que o tronco curvado na cadeira, como se fosse um arco de pedra à beira de ruir.
A jovem médica auscultava o tórax, aproximara-se dele, e o velho sentiu uma vergonha súbita, embora a imaginação flutuasse e o gesto fosse também a aproximação de uma mulher. Mas, no fundo da consciência, não podia fugir da realidade do seu corpo em declínio.
Respire fundo, disse ela, e o velho tentou, mas a inspiração saiu-lhe frouxa.
Está magro, tem de comer, sentenciou a médica, enquanto se sentava, arrumando o estetoscópio.
Foi então, quando a médica, compenetrada, começava a garatujar numa folha de receitas, que o velho recordou Úrsula. Quase disse em voz alta que Úrsula tinha aquele nome feio, mas que era um pedaço de mulher. Mas não disse nada, apenas lhe saiu da boca um murmúrio que também podia ser um desabafo ou um gemido de dor...
...Úrsula tinha o noivo pelo braço, mas sorrira para ele, só para ele, o velho que já não era velho e que delirava numa recordação. Ao fundo, nuvens ameaçavam o arraial, levantara-se um vento e os músicos procuravam sair do estrado para se protegerem da chuva iminente; o noivo chamou-a ao correr, mas Úrsula não saíra do mesmo sítio, até que começou a chover e onde antes havia um baile restaram apenas dois jovens, que pareciam conversar em silêncio, infinitamente, enquanto a chuva crescia...
...Pode vestir-se, disse a médica, e o velho agarrou na camisola interior e torceu o corpo, para tentar enfiar o braço na manga. Sentiu uma dor ligeira nos ossos. Percebeu porque se lembrara de Úrsula, a médica tinha uma semelhança com ela, a forma das sobrancelhas era exactamente idêntica...
...Úrsula descia as escadas e ele estava em baixo. Tirara o chapéu para a cumprimentar, não queria fazer mais nada, mas então segurou-a pelo pulso, como se pudesse também suspender o movimento e agarrar o tempo naquele instante. Úrsula tirou ligeiramente a mão do corrimão, mas não sacudiu os seus dedos, não o afastou, sorrira de novo, porque o aceitava, porque o aceitava...
...Tem de tomar estes remédios: a médica estendera-lhe a folha de receitas. E não se pode enganar. Qual é o seu número de utente? O velho abotoava o casaco e apertava o cinto das calças. Lembrou-se de uma das perguntas que pleneara fazer: E vai passar a dor? Sim, num instante, vai passar a dor!...
...O quarto era pequeno, como aquele gabinete de consultório. Úrsula ficara de costas, virada para a janela minúscula, o vestido branco com flores pintadas, talvez pensasse na pneumonia que a ia matar quatro meses depois. Será que me amas? perguntou, a falar para a vidraça. E ele mentiu, que sim, que sim, aproximando-se devagar, até lhe tocar muito ligeiramente no ombro, para a segurar, para que não fugisse dos seus sonhos, com a sua pele lisa, o cabelo castanho escuro e o sorriso delicado...
...Quando tomar os remédios, tem de seguir estas instruções, disse a médica, não se pode enganar. O velho percebera que a consulta terminava. Levantou-se, sem saber bem o que fazer a seguir, se havia ainda alguma coisa a esclarecer. Lembrou-se de repente e perguntou se ia ficar melhor. Que sim, que sim, mentiu a médica, empurrando-o suavemente para fora do consultório.

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