31.12.06

Fragmentos do passado (primeiro dia)


Chamo a esse tempo "o passado", por não me ocorrer melhor. Podia talvez ter escolhido a palavra "antes", para marcar a ideia de que a nossa vida, depois, nunca foi exactamente viver. O passado é uma mancha obscura. Dele, lembro-me de pedaços confusos e desordenados. Um pouco como as minhas roupas remendadas: tenho um espelho partido em casa e vejo-me por vezes, na minha triste figura. Alguns cabelos brancos, mas não demasiados, a barba selvagem. Portanto, devo ter 40 anos, ou à volta disso, demasiado velho para este mundo. E não me recordo do meu nome.
Estava a escrever sobre a minha roupa. Agora, que é inverno e a serra parece uivar de dor, tenho apenas um casaco demasiado leve, com uma manga rasgada, e duas luvas incompletas, que deixam três dedos de fora. Uma camisa em farrapos, as calças com vários remendos. Às botas, essas, vou improvisando reparações. A roupa é um pano de fundo que tapa a minha nudez suja.
Assim é a nossa existência, na aldeia e na casa. A aldeia tem quase sempre os mesmos habitantes, ou assim parece, porque me vou esquecendo das pessoas e surgem novos rostos, devem ser os mesmos que vi na semana anterior, mas têm aparência de novos...
Ontem, regressou a minha memória da escrita. Senti uma felicidade imensa, porque se salvava alguma coisa do tempo passado. Assim como aquele homem, António, se lembra de números e esqueceu as letras, eu recuperei a memória dos pequenos símbolos, e tudo de repente fazia sentido, a sequência e as próprias palavras ganhavam uma luminosidade que, antes, não conseguia ver.
Há um livro em casa, uma longa lista de nomes, em papel muito fino, que se rasga. Acordei a saber ler e não consegui fazer outra coisa, estrangulado por uma sede intensa. De súbito, de dentro dos pequenos volumes, vibravam outras pessoas, de um mundo desaparecido. Fiquei em transe, a ler todo o dia, até que a mulher que se chama Leonor e o homem chamado António, que não sei ao certo quem sejam, mas que vivem na mesma casa, começaram a estranhar a minha obsessão. Que estás a fazer, perguntou-me ele. E eu expliquei que estava a ler:
"Hoje de manhã, lembrei-me de como se lê".
E depois de eu dizer isto, ficaram a olhar para mim, num desespero misturado com esperança. E a mulher chamada Leonor fugiu, a chorar. E eu pensei: tenho de ensinar a criança, antes que me esqueça outra vez.

30.12.06

adeus 2006

e depois ele ficava encantado a olhar para as fotografias pixelizadas
que lhe enviavam os amigos por email de madrugada.

e depois ele abria a janela da sala e sentia-se capaz de gritar,
a plenos pulmões, um nome de uma das vizinhas do prédio.

e depois ele saía de casa quando era ainda muito cedo
e chegava quando já era demasiado tarde.

e depois ele escrevia poemas sem qualquer razão aparente
a não ser essa necessidade de dizer as coisas sem razão.

e depois ele sorria
e apagava a luz.

28.12.06

Historieta de Natal 2

Caía uma bátega de um Outono adiantado, muito húmido, e as festas aí a chegarem de novo. Caía num bairro de subúrbio sossegado, livre de ruminantes trânsitos, com cruzamentos arejados, rotundas fluidas. Moradias de um, predominantemente dois, raramente três pisos, todas geminadas em pares. E pequenos jardins, rematados por gradeamentos de ferro forjado cuja diversidade de padrões e pinturas resultava num colorido tutifrutesco.
Era deste ambiente descontraído que se aproximava velozmente o Natal. Os habitantes dispunham-se a recebê-lo pendurando aqui e ali, ternamente, uma luzinha ou outra que brilharia nas noites chuvosas vindas da serra.
As vivendas dos números 11 e 13 da Rua de S. Frederico, à Avenida dos Companheiros, coladinhas como duas valvas de uma amêijoa, não destoavam deste tom natalício.
O casal de aposentados Caiado mudara-se há uma década para o n.º 11, e logo de início aí fizera entusiásticos melhoramentos, incluindo pintar de branquinho-robialaque um precioso relógio de sol, talhado em cobre antigo bem no centro do canteiro principal.
O n.º 13 era ocupado há precisamente um ano pelos Valcovo, oriundos dos contrafortes de Viseu: Júlio e consorte Marieta, ele bacharel em gestão de empresas. Mal chegaram, acolheram alegremente a quadra próxima, sublinhando de luzes brancas a porta da nova morada. Ficou bonita e logo outros moradores se manifestaram elogiosamente.
Armindo Caiado notou o ornamento ao sair para uma jogatana com os amigos, certa noite. Volveu imediatamente atrás, irrompendo pela porta da cozinha:
- Ó Preciosa, que dia é hoje?
- 17 de Novembro, porquê?
E ele num pensativo vaivém:
– São os novos aqui do lado: já penduraram as luzes de Natal, e falta mais de um mês. Costumamos ser os primeiros...
Regressa cabisbaixo ao exterior e lança um olhar agastado à iluminação vizinha: Tudo branco, que coisa tão esmorecida! O Natal é vida, é cor!
Nesse serão o convívio no café soube-lhe a borras. Às seis e trinta do dia seguinte pulou da cama como uma mola: não esperaria nem mais um minuto para desenterrar do sótão os enfeites natalícios! Luzes em série brancas, vermelhas e verdes que decorariam, como sempre, o alçado frontal da casa, tornando-a a mais adornada do bairro.
Tudo isto parece que foi ontem. Hoje, um ano depois, sobre o bairro cai uma bátega de um Outono adiantado, muito húmido, e as festas aí a chegarem de novo.
Quinze de Novembro e Caiado numa agitação desenfreada.
- Este ano a gente antecipa-se, Preciosa! Ou queres ser apanhada desprevenida outra vez?
- Antecipa o quê? Desprevenida, eu? – A mulher distrai-se do café com leite. De vinco na testa, observa o marido a acartar com os sacos dos enfeites escada do sótão abaixo e a testar ansiosamente as gambiarras. Mal pudera ele esperar pela luz do dia para se deitar à tarefa de saudar quadra e vizinhança com os frisos luminosos da sua tradição refulgindo aos ventos.
Ao fim do dia o vizinho deparou com a iluminação, e alegrou-se. De manhã, na ingénua tentativa de se sintonizar, adquiriu também ele gambiarras em vermelho e verde e deitou mãos à obra.
O casal do 11 regressava das compras mensais pela tardinha, quando deu de caras com duas casas siamesas cintilando lado a lado, em tons patrióticos e bentos, ao lusco-fusco do Outono. Preciosa espreitou o marido pelo canto do olho e viu a irritação avermelhar-lhe o pescoço até lhe inundar as feições redondas.
- Olha que bonito que isto fica assim... – arrisca ela.
- Mas é que isto não fica assim! – declina o rubor indignado do Armindo, tomando por afronta o que os vizinhos intentavam como agrado. Todo inteiriçado, fechou-se ao mundo até se deitar. Sonhou que decorriam anos e a família Valcovo recebendo o Natal cada vez mais cedo, a ponto de se ver ele, Armindo da Ressurreição Caiado, compelido a programar as decorações mal finda a Páscoa!
De manhãzinha, desapareceu rumo ao centro comercial. Quando Preciosa teve licença para sair ao jardim, novos enfeites alindavam a casa, destacando-a da sua congénere: uma gorda gambiarra azul debruava agora a esquina do prédio, directamente do telhado até ao empedrado; uma outra, com um sofisticado regime de piscadelas em rosa-vivo, dava vida aos cantos do alpendre e da varanda. Armindo sorria, vaidoso, de mãos na cintura admirando o brilho da própria glória.
Os Valcovo estranharam a exorbitância do colorido do lado, mas pouparam-se a interpretações precipitadas. A seu tempo, receberam o 1º de Dezembro colocando em posições estratégicas quatro estrelas cadentes: a maior sobre a chaminé exterior, as três menores dentro de cada uma das janelas da frente.
Regressava Caiado da caminhada digestiva quando recebe como um murro no estômago o upgrade festivo da moradia vizinha: Há gente com uma mania das grandezas! Durante dois dias maldisse entre dentes a vizinhança. Ao terceiro, a mulher já não lhe aturava o feitio:
- É o que faz andares desocupado. Arranja um entretém!
Bem-mandado, o norte-alentejano arrancou direito a uma loja dos chineses e voltou com o bolso e a disposição muito mais leves. Trabalhou afincadamente, exposto à intempérie da tarde, com um gorro de orelhas axadrezado e luvas de meios dedos. Ao anoitecer, enregelado mas todo vivaz, lançou um sorriso desabrido à obra.
A casa ganhara foros de pirilampo: Cada uma das janelas apresentava uma gambiarra multicolor e musical; do lado esquerdo da chaminé pendia uma rena com um gorrinho vermelho e à direita um conjunto de embrulhos em tons de azul; pelo corrimão das escadas da frente descia enrolada uma fita em dourado espampanante, vindo a terminar num trio pendente de bolas vermelhas.
Se Preciosa quase se ofuscou ao chamá-lo para jantar, já Marieta Valcovo, a chegar de uma oferenda a Santa Leocádia, estremeceu com a ostentação.
- Ou são uns grandes simplórios ou o gajo está a provocar! - comentou o Valcovo, maldisposto com contratempos da vida e subitamente bem disposto a arregaçar os princípios de sã vizinhança, mergulhando no espírito do despique.
Estava o rastilho tão aceso como as iluminações natalícias.
Às vinte e duas e quarenta e cinco, era ver Júlio fixando um pinheiro artificial no canto da varanda, enquanto Marieta reproduzia a composição no alpendre abaixo, com efeito visual de grande coerência. Nas janelas, já enfeitadas de lindas estrelas cadentes, pendurou ele duplas de sinos que acendiam em alternância - ora um, tlim, ora outro, tlão - repicando silenciosamente. A pérgola do corredor da garagem embelezaram-na com uma gambiarra prateada de luzir intermitente, que culminava num jarrão com plantas secas pintadas a spray acobreado. Mal tiveram forças para cear, mas deitaram-se naquele 9 de Dezembro com a sensação do dever cumprido.
É desnecessário dizer que o colorido alheio acinzentou os humores de Armindo da Ressurreição. O gestor lá por ser gestor não era mais do que ele! Urdiria ali mesmo um plano de combate a invejosos.
O primeiro lance consistiu em pendurar duas bolas psicadélicas rotativas, que emitiam toda a gama de cores, uma no pinheiro branco artificial, a outra a meio do tecto do alpendre. A grinalda que enfeitava a porta desde o primeiro ano foi enriquecida com uma fita púrpura, animada de um dispositivo que produzia som de sininhos muito próprio. Logo abaixo, um Pai-Natal insuflável do tamanho de um menino da quarta classe guardava a entrada. Três anjos, de vestes de veludo grená como os cortinados das óperas, abrilhantavam os picos de outros tantos arbustos. Através das janelas resplandeciam cá para fora composições luminosas em forma de vela - com pavio, um pingo de cera a escorrer e tudo.
A senhora Caiado tentou espreitar pelos vidros, mas a profusão de alegria era de molde a toldar-lhe a visibilidade para o exterior. Saiu pois pelas traseiras, percorreu boquiaberta o corredor da garagem, entretanto velado por anõezinhos de cerâmica intercalados com os reis magos e, ao acercar-se do jardim da frente, presenciou uma versão artesanal da Feira Popular: com imaginação de criança e paciência de mágico, Armindo usara uma enorme mangueira tricolor cuja luz ora corria para a esquerda ora para a direita, num efeito muito original; fizera-a partir lá de cima da chaminé como se fosse ideia do próprio Criador, descer pela aresta do telhado e rebordar delicadamente o azulejo aex-libris da família “Sonho de Nossa Senhora”.
- E por último... – Braços triunfantes estendiam-se na direcção do toque final: um imponente e vigilante “Merry Christmas!” luzia alcandorado de lés a lés do telhado.
Preciosa mirou tristemente o marido, questionando-se sobre que carga de água o levara a confundir a época com um arraial minhoto. À coca por trás dos cortinados, os Valcovo não se continham: "Jesus, que repimpado mau gosto!"
Mas Armindo sentia-se profundamente satisfeito. E crendo-se insuperável jurou, em nome das divinas simplicidade e harmonia que devem presidir a qualquer Natal, não mexer nem mais uma palha. Ou nem mais uma gambiarra.

A 21 de Dezembro, dia de São Pedro Canísio que Caiado tanto estimava, o nascimento de Jesus tinha as boas-vindas mais do que garantidas. Rapidamente a colorida disputa se afamou pelas redondezas. Nas vésperas do Ano Novo, excursões familiares deslocavam-se ao cenário, no intuito de acrescentarem à alegria da quadra um momento lúdico mais hilariante. Locais e familiares de fora divertiam-se perante aquele espectáculo a duas vozes, e houve quem troçasse de um miudito que queria andar de carrossel enquanto não chegavam os foguetes.

22.12.06


Bons Desejos
Bons Desejos


Caros companheiros de blog e leitores que nos lêem e às vezes comentam e outras vezes não,

Que este Natal seja um dos felizes momentos deste ano e que 2007 vos ofereça mais motivos de Alegria.

CLeimart


Tradução:

Caros companheiros de blog e leitores que nos lêem e às vezes comentam e outras vezes não,

Que este Natal seja um dos felizes momentos deste ano e que 2007 vos ofereça mais motivos de Alegria.

CLeimart



19.12.06

O corredor

Era um corredor com muita luz depois de se acordar. Mas, à noite, era escuro e mais comprido. Comprido e estreito como um comboio, com portas para salas de onde vinham os estalidos de cadeiras onde ninguém se sentava.Ouvia-se, como a voz de alguém zangado, o toc toc de um relógio alto, mais alto do que eu, que parecia gritar sempre que acordava e me levantava para fazer chichi.Eu sabia que não era preciso ter medo e que não estava mais ninguém em casa, só os meus avós a dormir no quarto ao fundo do corredor comprido. Mas, mesmo assim, era escuro. E os toc toc do relógio mais alto do que eu pareciam passos, de alguém que caminhava ao meu lado sem que o conseguisse ver.Às vezes, que eram muitas, apetecia-me fazer chichi mesmo ali, na cama, para não ter de me levantar, abrir a porta e entrar no corredor.Mas depois lá ia. Toc toc, toc toc, primeiro devagarinho e depois corria para a casa de banho. A seguir saía, toc toc outra vez, primeiro passo a passo para não fazer barulho e depois muito muito depressa corria e corria como se o quarto estivesse muito muito longe (e estava). Fechava a porta do quarto e enfiava-me na cama, com os lençóis e cobertores por cima da cabeça.De manhã, acordava. E o toc toc era uma música doce, como um bom dia e um beijinho de avó.
Publicado em «Contos Contigo», colectânea editada pela Livro do Dia. O valor da compra reverte para a APECI - Associação para a Educação de Crianças Inadaptadas de Torres Vedras.

12.12.06

setenta e três

esta noite vou fazer um poema de silêncio
tão tentado que estou a dizer-te azul da cor da minha pele
marcada pelos pensos rápidos com que estancaste
as feridas que trouxe na hora de chegar a casa
depois do trabalho

um poema de silêncio em que se diga
que foram setenta e três dias o meu plano de trabalhos
delineado por generais em salas escuras de quartéis só luz por fora
setenta e três dias onde me julgaste condenado e morto
desaparecido para sempre como
todos aqueles que ficaram vivos apenas no silêncio
deste poema que não fiz mas todas as mulheres e os seus filhos
todas as mães e avós com os seus netos, quietas pelos cantos das casas
onde a mágoa e a dor eram apenas uma maneira actualizada
de compor os quadros nas paredes
onde tudo o que se escrevia ou fazia eram poemas de silêncio
que de tão fortes estavam capazes de calar a gritaria o choro e a dor
dos que nas paredes do lado sentiam a corrente eléctrica a percorrer o corpo
e as matracas dos generais planeadores de trabalho nas articulações
marcas que pensos rápidos não tapam
mas que tentaste, sim, tentaste e prometeste-me que sim.

10.12.06

Historieta de Natal 1

Já fora criada uma delegação de moradores que reclamara devidamente – na polícia, junto do gabinete de apoio ao munícipe, na defesa do consumidor, através da linha SOS Ambiente. Porém, a situação persistia: daquele canto da praceta emanava sem piedade um cheiro semelhante ao das águas-ruças entornadas em dias quentes nos ribeiritos da Beira-Baixa. Empestava a via pública e alargava os seus efeitos aos espaços privados, no mínimo até ao nível do segundo piso das habitações. Com a exaltação da quadra os narizes andavam mais sensíveis, e o fedor ganhava relevância suficiente para sonegar a residentes e passantes o direito de deslumbre com o fulgor luminoso das montras.
Francisco esfregou as mãos grossas, de nós articulares enormes, disformes, e ficou a mirar as pernas das calças com o olhar vítreo de um zarro. De alto a baixo vestido de castanho. Os pés e a cabeça pontuados de crostas, na boca algumas, também. Um rasgão de vento frio fê-lo recostar-se melhor no canto do prédio, a uns metros da montra obscena do talho, e retomar o chorinco que arrastava há meses e que foi perder-se nos brilhos intermitentes da estrela pendurada à entrada do lote 5, em frente.
A dona da retrosaria, que tinha ido aos bifes e em certas noites fantasiava com o talhante, meneou a cabeça com desprezo e arriscou, num passo de sedução porta do talho adentro:
“Tsst. Está assim desde que deu em vegetariano…”.
“Em vegetariano? Nada disso, não senhora, eu conheço a história”, contrariou o dono das carnes. E entre duas cutiladas disparou uma rajada: “Na véspera do S. Pedro a mulher voou daquele charco de tédio que era a vida lá de casa, isso é que foi. Queixava-se de que o que mais gostava nele era o que ele menos gostava em si, e que estava farta de mal-enjorcados. Punham-se à janela virados cada um para sua rua. Apartheid conjugal, já ouviu falar? Durante uns tempos o homem aguentou-se, resistiu à solidão, mas sucumbiu ao abandono, que é pior. Ainda deixou abertas algumas portas, por onde ninguém quis entrar. E depois, sabe a senhora, há momentos em que todas as rejeições sofridas na vida se abatem sobre nós, com o peso de uma coluna de água da altura deste prédio…”
A da retrosaria estranhou o elaborado da linguagem no meio da crueza do negócio, e ficou com a sensação de que não tinha apanhado tudo. Limitou-se no entanto a pisca-piscar os olhinhos:
“O senhor é tão humano, senhor Joaquim, não lhe conhecia esses sentimentos…”. Mas à socapa, por entre dois perus pendurados e uma gambiarra de luzinhas-bago-de-arroz, deitou ao canto poluente um relance de nojo que atravessou a montra do talho: “É um espectáculo desagradável à vista, este Chico Miserento, todo de castanho, todo cor dos miseráveis…”.
O talhante estendeu-lhe o saco de plástico com as fatias em sangue:
“Não contem comigo para o despejarem da praceta, aviso já. Acha que eu, ganhando a vida com bichos mortos, me vou incomodar com o cheiro do Chico? Sabe o que ele me disse ontem? Que naquele cantinho sonha com mesinhas-de-cabeceira azuis, a boiarem ao som do tilintar dos talheres dos jantares que as pessoas fazem ao relento de Agosto. O que é que um gajo responde a isto?... Não, não sou eu quem o vai contrariar.” Entre pedaços de gordura e músculo que transbordam da picadora, também ele, o talhante, se perde no brilho macilento esmagado pelo movimento espiralado da máquina: “Há que ter respeito por alguém que se sentou nas traseiras da vida e aí ficou, minha senhora.”
“Pois, tá bem, senhor Joaquim! Estou de saída, Boas Festas."

6.12.06

Natália no pão com marmelada e queijo

IV



Dá-me a tua mão por cima das horas.
Quero-te conciso.
Adão depois do Paraíso
Errando mais nítido à distância
Onde te exalto porque demoras.


Natália C.






Paródia Natalícia


A arca de madeira da sala contou os passos arrepiados que subiram do fundo da escada até à ombreira da porta. Havia uma chuva pequena de tempo a bater a vidraça: o fim da guerra fez toda a gente sair à rua para dançar o medo
-soube de ti no fim da guerra, quando o teu corpo era menos um braço e menos dentes,
quando tu eras menos dedos na mão, menos cabelo e menos eu


eu não quis dançar e tu também não.

As pessoas não nos viram entrar em casa e continuaram, felizes e descalças, no átrio da igreja azul.

Em casa despi-te.
Tirei a camisa suja do teu corpo novo para me procurar nele. Imediatamente me chegou o cheiro da ausência da posição do sítio das coisas em ti:
os teus dois braços na minha cintura,

os teus cinco dedos da mão no meu ombro,
uma boca de lábios grossos a sorrir dentes.





Tapei a cara com as mãos para me lembrar de ti antes.
Acabei por fazer amor com a pele doce dos teus olhos.


4.12.06

semi-breve

E o homem cuspiu uma pomba
quando ouviu que o mundo ia acabar

2.12.06

numa livraria dos subúrbios

com certeza não tem a voz da terra do Miguel Real
mas eu acenei com a cabeça e disse que sim, ali está,
entre dois outros livros pouco interessantes e, talvez,
muito mais propícios a finais de semana nos subúrbios.
passava-se com um toque de violinos em fundo,
esta cena de livraria ao sábado à tarde, numa fotografia
onde, para além do autor, uma mulher bonita lia e chorava.

com certeza não tem a voz da terra, esse romance com autocolante
premiado sobre a capa, porque normalmente esses romances
desaparecem com as devoluções trimestrais à editora
e o trimestre, por ser de natal, acabou mais cedo - por certo
não fará parte de nenhuma campanha natalícia com descontos
a quarenta e dois por cento por exemplar comprado em atacado
porque ninguém vai ler esses romances históricos na pausa de natal.

com certeza não tem a voz da terra e eu disse-lhe que sim, ali,
e o senhor de bigode sorriu, encaminhou-se para o monte de livros
no chão, pegou num exemplar e, lendo a contracapa, disse em voz
segura, "vou levar", e eu fiquei contente porque o normal numa livraria,
ainda para mais em finais de semana nos subúrbios, não é vender livros
assim, é muito mais normal vender uma coisa barata para o aniversário de
um coleguinha da escola ou então não vender mesmo nada.

e agora que o senhor que se transformou em meu cliente
levou para casa a voz da terra do miguel real, na fotografia volto
a ficar só eu e esta linda mulher que lê e chora, sentada ao meu lado,
ambos um pouco erectos nas nossas poses de modelos fotográficos
captados por lentes que talvez estejam sujas, que talvez deixem para
a posteridade, alguns grãos de pó gravados sobre a imagem, sobre esta
imagem de um sábado à tarde numa livraria dos subúrbios.