30.3.07

Maternidade




As personagens a entrarem no texto como se chamadas pelo primeiro e último nome uma a uma: as personagens na porta a quererem passar, a atropelarem-se por um lugar no mesmo sofá branco, longo de regras, num momento de magia lexical em que as frases se mordem pelas pontas das saias, uma a uma, tecido e dente, dente e tecido

(o discurso a fazer-se)
- a linguagem que constrói o real


Elas
(as personagens)
a encolherem-se, a esticarem os pés no sofá e a problematizarem a família, a pedirem lenços no momento do lamento
- as minhas personagens choram no sofá da sala quando falam de si e eu penso nelas quando me vou deitar


(aparecem-me nuas á porta, pedem abrigo)

elas a crescerem-me na cabeça, as suas vidas a saírem pelo buraco que se abre no fundo da cara, antes do queixo
- o corpo branco nu das minhas personagens cheira a fruta e a livros novos


Mas elas e as suas unhas. Elas e as suas unhas a serem uma ampulheta que mede tempos de vida.
Unhas.
As pontas das unhas a desfazerem-se nas mãos como areia da praia; areia da praia a sair-lhes nervosa pelos dedos e pelos ouvidos, elas a desaparecerem
(unhas, ouvidos, areia. As minhas personagens a acharem aquilo tudo demasiado terrível,
a terem medo, a afastarem-se)


a sombra dos seus olhos a desenharem noite
- um dia faz-se depois de uma noite, um dia depois de uma noite, depois de noite


as unhas e a areia da praia


Um dia, mais nenhuma bateu à porta.


13.3.07

A mulher incendiada ouviu a língua no centro do seu corpo
e no entanto: Um tremor silencioso agitou-lhe as espátulas.
Ao mesmo tempo repercutiam, vibravam, sílabas húmidas
nas dobras secretas entretanto entreabertas. Telúrica sede
de Ontem regressar. Ser ainda este desejo o seu primeiro.

Nem um som. Nem um gemido. A mulher incendiada levantou
o seu ventre e uma montanha no outro lado do mundo ruiu
sem que entendessem porquê os turistas das fotografias.
Uma minúscula esfera basta. Um cacto de pedra sem água vive.
Uma mulher prescinde da música, das palavras. Do silêncio não.

6.3.07

Ainda a vida não retoma o seu negligente passo.
Hoje, como ontem, o sono não vem.
Ainda te sinto, cingido neste abraço
e não sei retirar-te, não sei, meu bem.

Ainda por dentro palavras em excesso
e beijos por mostrar em fotografias.
Ainda o teu nome mas agora em retrocesso,
um filme que se apaga ou chávenas vazias.

Ainda estás aqui e quem dera que partisses
ou então permanente, para sempre e afinal.
Ainda esta vontade que tu nunca existisses,
não sentir, como prazer, este meu mal.

atropelamento

fato preto fato preto
suava pela cidade andando em círculos
em tons todos verdes amarelados
fotografias antigas no olhar
óculos estragados lentes
fato preto fato preto
véu água lágrimas saída
memória evacuada perigo de
explosão mudança de via
de verso de linha
fato preto - repito - fato preto
dança manipulação desgraça
carro a apitar berma da estrada
como a vida agora só em fotografias
qualquer coisa de errado
fato preto fato preto