29.4.07

Territórios de Caça (IV)












4. A colecção tinha fotografias e um pequeno desenho, que ocupava metade de uma folha normal. Representava um barco cheio de gente, nas margens de um rio ou de um lago. Fiquei a observá-lo, sem saber o que significava. Não tinha qualquer inscrição que me permitisse perceber quem o desenhara (talvez Fárkas) ou porquê.
As fotografias eram ainda mais estranhas: havia uma de um grupo num trenó, a torre do que parecia ser um campo de concentração e três mulheres, de frente para o fotógrafo, a sorrirem para ele. Esta última devia ser dos anos 50 e era a que estava em melhor estado. Atrás, uma inscrição: Vera, depois, mais pequeno, a lápis, veritas, e a frase "somos as circunstâncias".
A pasta de Fárkas continha pequenos pedaços de cartas, algumas rasuradas; ou podiam ser apenas fragmentos de diários de diferentes pessoas, pois estava tudo escrito à mão e sempre em letra minúscula, como se não houvesse papel suficiente e os mensageiros quisessem poupar cada centímetro quadrado.
Só consegui perceber algumas frases (por vezes, estava tudo ilegível, de tal maneira o papel se deteriorara, ou o lápis quase se apagara entretanto): "a insuportável monotonia da (...) está a separar-me da minha condição humana. Sinto que sou um animal em busca de migalhas de comida (...) a fome consome as minhas entranhas e o frio transformou-me num cadáver que se move como um fantasma". Li outro excerto: "os guardas vieram e levaram o livro de [ilegível], onde anotara tudo o que nos aconteceu. Em desespero, queria matar-se, dizia que não aguentava mais. Agora, resta apenas este livro. Talvez o descubram um dia, mas até lá, tenho o dever de resistir".
"Ontem, fuzilaram o [pareceu-me ler um nome, mas não podia ter a certeza]. Portou-se com dignidade e sempre é melhor do que esperar os interrogatórios. A noite é interminável".
Alguns destes documentos eram de prisioneiros, mas nunca havia nomes compreensíveis, categóricas assinaturas: podiam ser textos de judeus mortos no holocausto ou de soldados capturados pelos russos ou de vítimas do comunismo. Não encontrei uma só pista que me esclarecesse, à excepção da fotografia das três mulheres, vestidas com roupas que podiam ser dos anos 50. De resto, os documentos eram incompletos e ambíguos.
Qual a razão que levara Fárkas a juntar todos aqueles rastos incompreensíveis de vidas (da sua vida)? Teria sido prisioneiro, pensei eu, e temia que estes testemunhos caíssem nas mãos de alguém hostil. Era plausível...

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Territórios de Caça (III)


3. Nunca quis vasculhar o conteúdo do dossier que Fárkas entregara à minha guarda, mas não resisti, após um acidente: estava enervado com a simples presença daqueles papéis no meu apartamento. Tinha-os guardado numa gaveta e senti que precisava de um esconderijo menos óbvio. Peguei na pasta, mas segurei-a mal. Caíram objectos de dentro. Folhas. Algumas fotografias intrigantes, indefinidas.
O que primeiro despertou a minha atenção era um poema rabiscado, em letra minúscula, num papel decrépito. Mal se notavam os contornos que o lápis desenhara e que o tempo havia praticamente consumido:

A corrente interminável
prende mil pernas à terra
O ideal socialista
Desta forma realizado
Unidos todos os escravos
Num rio de ferro
Pálida multidão
Sobre a mortalha de neve
Onde não cresce nada

Devagar, hesitante, abri o dossier, para colocar lá dentro os papéis caídos. E vi o que continha: havia mais fotografias. a imagem de uma espécie de palácio de certa dimensão, com um parque à volta, árvores e uma velha torre. Mas, em primeiro plano, o corpo deitado de um homem, vestido com o que parecia ser uniforme prisional; e outra imagem era de inverno, com uma fileira de homens agrilhoados, todos de costas; e ainda outra, mostrava um grupo de indivíduos meio fardados, alguns em tronco nu, obviamente no verão; sorriam; e ainda outra fotografia, pouco nítida, mostrava o que parecia ser uma cela de mosteiro, austera e profusamente iluminada pela janela que o sol brilhante transformara numa mancha disforme de luz.
E, sobretudo, havia folhas soltas, de poemas e cartas, textos escritos com diferentes caligrafias. Um poema chamava-se "Acidente de Trabalho". Estava escrito em letra fininha e metódica, a ocupar o mínimo espaço de uma folha quebradiça onde estavam outras anotações sobre a prisão e os prisioneiros. Alguns nomes, também. Li o poema:

O prisioneiro quase morto
Jazia sob a pedra imensa
Um rio de sangue escorria
E da boca escancarada
Apenas um vago sopro
Que mal se ouvia.
Sem medo no rosto
Nem teve tempo
Para deixar a alma dizer:
Finalmente, a liberdade.

E ainda outro poema, escrito com a mesma caligrafia da folha anterior, mas não assinado. Em cima, em letras grandes, lia-se um título: Pelotão de Fuzilamento.

Seis da manhã
Entre a cinza da aurora
Ouviu-se a súbita
Chicotada de seis espingardas
A estilhaçarem um coração
E eu vi o esplendor do novo dia
A morte da madrugada
E o radioso amanhã*

Fechei a pasta, a tentar reflectir. Sabia que em breve iria abri-la de novo. Fui fazer um chá. Coloquei o dossier sobre a minha mesa, afastando primeiro toda a tralha que tinha em cima (jornais velhos, esboços de textos, a máquina de escrever). Acendi a luz de trabalho e comecei a ler o conteúdo do dossier de Fárkas.
* (nota do tradutor: dos poemas no original húngaro, optou-se por traduzir sobretudo o sentido trágico e político)

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28.4.07

Territórios de caça (II)


2. O calor chegara definitivamente e eu pairava numa apatia sem nexo. Por vezes, no vazio, olhava com curiosidade para o dossier que o meu vizinho me entregara. Mas não o abri. Guardei-o numa gaveta, embora a sua presença oculta me queimasse os sentidos.
Após sofrer o colapso e ao entregar-me aqueles documentos, Fárkas mostrara saber o meu nome. Confiar em mim significava também que ele sabia verdadeiramente quem eu era. A estranheza dessa revelação só assentou na minha consciência nos dias seguintes ao incidente. Por um instante, parecera-me existir ali cálculo ou uma dose de encenação; ao pensar mais no assunto, compreendi que o velho agira com a intenção de mostrar que me conhecia e compreendia. O meu nome fora pronunciado com volúpia, apesar da aflição em que ele devia estar na altura.
À partida, não devia ser estranho que um vizinho soubesse o nome de outro. Mas Fárkas mudara-se para aquele prédio duas semanas antes (daí a fechadura nova). Não tive curiosidade sobre essa mudança, porque eu próprio ainda não tinha um mês naquele apartamento. Apenas soube do facto, sem qualquer interesse particular. E, no entanto, aquele desconhecido interessara-se por mim. Talvez tivesse conhecimento das minhas actuais dificuldades; enfim, sabia, certamente, pois existira um leve ar zombeteiro na expressão dele.
Seria tudo fabricado pela minha imaginação ou um complexo aviso? Que Fárkas conhecia o meu nome, ele próprio o confessara. E eu não tinha colocado identificação na caixa de correio, nem nas campainhas da porta. Talvez ele me conhecesse dos meus artigos no jornal regional, mas, enfim, isso ainda era mais absurdo: que género de curiosidade podiam despertar esses textos? Talvez já nos tivéssemos cruzado, pensei, a certo ponto, mas da minha memória não surgia nenhum rasto de familiaridade. É incómodo sermos conhecidos de alguém que não conhecemos e essa comichão tornara-me impaciente.
Cansei-me de fazer estas especulações e decidi encontrar algum indício que pudesse esclarecer o caso. A primeira pessoa que procurei foi a idosa que ficara com o gato gordo de Fárkas. Por sorte, quando subi ao andar de cima, a mulher estava a fumar um cigarro, na varanda colectiva: sentara-se numa cadeira, junto à porta; vestia um robe antigo e imundo; era gorda, disforme, e o gato deitara-se a seus pés, estirado no calor, lânguido e perdido no prazer do sono.
Cumprimentei a mulher e tentei iniciar uma conversa: comecei por uma mentira pouco hábil, disse que tinha subido à procura do senhor que se sentira mal. Perguntei-lhe se ele já tinha regressado.
A mulher largou uma risada e olhou para mim com desconfiança trocista:
"Veio aqui um amigo dele", disse ela. "Deu-me dinheiro para comprar comida para o gato e explicou que o vizinho deve ter alta na próxima semana. E que está muito melhor".
Balbuciei um agradecimento. Quase bati em retirada, mas não resisti a mais um detalhe de curiosidade:
"E a senhora sabe o que faz o nosso vizinho?"
Ela largou uma gargalhada:
"Tem idade para estar reformado".
Senti-me estúpido e, sobretudo, sabia estar a ser impertinente, a rebaixar-me a mexericos. Devo ter corado de embaraço e quis sair dali, mas era tarde. A velha interessara-se por mim, não devia ter muitas ocasiões para falar com outras pessoas:
"Um homem distinto e educado", largou ela, referindo-se a Fárkas. "Parece ter pronúncia de Budapeste. Juraria! Mas é arrumado, de hábitos regulares, como um padre. Talvez seja religioso..."
"Mas a senhora não sabe se ele é padre..."
Encolheu os ombros, disse que não sabia. E, depois, tagarelou por ali fora, embrenhando-se na sua própria existência, pois tornara-se desinteressante falar sobre o novo vizinho, sobre o qual, vendo bem, ela nada sabia, senão os óbvios aspectos físicos, exteriores e superficiais em que eu também reparara.
Quando me cansei da conversa, perguntei à minha vizinha se ele, Fárkas, tinha feito alguma pergunta sobre mim. Ela pareceu surpreendida. Fez um gesto de genuína negação.
"Ele foi sempre amável, mas nunca teve qualquer curiosidade em relação às pessoas que vivem neste prédio".

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26.4.07

Muitas vezes o amante se pergunta
quando virá essa outra noite,
pois a espera é o seu único caminho
e nela se deita e aguarda.
As palavras arderam-lhe por dentro,
o crepitar do fogo deixou acesas brasas
nos espaços antes sombrios do coração.

Pequenas luzes que pulsam,
vermelhas como os olhos de um tigre.

Outras vezes o amante teme
que o desejo evapore como a água
e opaco se torne o corpo, uma taça vazia.
Mas depois volta a deitar-se e aguarda,
essa noite que virá sossegá-lo, diferente.
Com o rosto da amada à sua frente.

25.4.07

Territórios de caça (I)


1. Do silêncio triste da tarde abrasada saiu um lamento que se propagou por segundos, acompanhado de um barulho que parecia produzido por um corpo humano a roçar nos degraus da escada ou o som pausado de uma mão que batia na parede. Durou pouco tempo, apenas o suficiente para eu me aperceber da sua estranheza. Mas não me mexi logo. Primeiro, ainda pensei que fosse um murmúrio delirante, vindo da minha sonolência. Ou talvez não passasse de uma vaga brincadeira de crianças. Fiquei imerso num torpor, talvez um minuto inteiro, a ouvir aquele leve murmúrio, semelhante a um coração a pulsar na distância. Se tivesse permanecido ali, sem vontade para investigar, nada haveria para contar nestas páginas, o que seria bem melhor para mim, sem dúvida. Mas a curiosidade levou-me a abrir a porta de minha casa. Saí para o corredor colectivo (a varanda corrida típica dos prédios húngaros) e abri a porta da escada (tarefa que me levou uma eternidade, enquanto escolhia a chave certa de um molho de chaves indistintas). E entrei na escadaria central do prédio.
Vi imediatamente o velho, que escorregava com suavidade, numa posição grotesca: ele tinha um braço esticado, implorava, como quem levanta um peso ou no gesto do afogado que se projecta para fora de água, até perder as forças. E havia naquela cara (o mais intenso de tudo o que vi no relance) o esgar de dor, o terrível sofrimento que se espalhava por toda a expressão humana, a cara dramaticamente alterada, dominada pelos poderosos olhos azuis claros, que me pediam ajuda, muito abertos.
Invadiu-me de súbito a consciência de que aquele homem estava a morrer. Era um facto simples, daquelas circunstâncias às quais não se oferece alternativa. E o moribundo teria uma visão semelhante à minha, embora inversa desta, numa perspectiva confusa e precária: ele percebera certamente o meu olhar de espanto e alarme; viu a minha hesitação. O homem moveu-se com dificuldade e olhou para mim com tal força que julguei ver chispas de impaciência. Tentou falar, mas não entendi o que dissera, embora não fosse incoerente. Então, o velho pronunciou com nitidez a palavra remédio. Eu mantinha a mesma hipnose dos sentidos, fascinado com a inesperada disposição de tudo. O braço do homem movia-se com dificuldade, numa espécie de limbo, procurou o bolso do casaco e retirou duas chaves, que ergueu na minha direcção. Repetiu a palavra "remédio", muito aflito.
Eu aproximei-me dele e quase senti o alento que se dissipava do seu corpo. Nem sequer me lembrei de descer escadas abaixo para pedir ajuda na rua. Só antevia os obstáculos daquele instante. Limitei-me a pegar nas chaves que ele me estendera, numa fraqueza de ânimo sem emoção, e fiquei uma eternidade ao lado do moribundo, a contemplar as chaves, sem saber o que fazer com elas, que portas abriam, que remédios escondiam.
O velho tinha os olhos azuis muito abertos e fez um esforço para falar.
"No meu apartamento", disse ele, ofegante. "No andar por cima do seu, 2b".
Estava pálido como uma folha de papel e parecia à beira de desistir, mas disse tudo o que era necessário: "O remédio... frasco ... na mesa da cozinha".
Corri, num pulo que me surpreendeu. Abri, frenético, a porta da casa dele. As mãos tremiam-me de tal maneira, que falhei a simples tarefa de fazer rodar a chave. Escapava-me o segredo da fechadura nova, com o seu truque na primeira volta. Mal senti alívio quando ouvi o estalido da abertura: invadi o apartamento vazio e escuro; a cozinha era à minha direita; a sombra de um gato gordo escapuliu-se. E ali estava o frasco que procurava. Voei no regresso, escadas abaixo. Pura sorte não ter caído.
O homem engoliu duas cápsulas e, devagar, regressou alguma cor à sua pele.
"Um estúpido esquecimento", explicou, ao recuperar o fôlego. Segurava o frasco na mão: "Devo andar sempre com isto, mas hoje esqueci-me, e com este calor..."
Recompusera-se um pouco: "Mais um minuto e morria aqui", disse o velho.
Quando se sentiu melhor, acompanhei-o até ao apartamento. Foi uma subida penosa, mas consegui ampará-lo até lá. Claro, não o devia ter feito, mas analisando bem, limitei-me a obedecer à sua vontade. Dali chamei a emergência, usando o telefone dele.
"Se sobreviver, serei certamente internado", disse o velho. "Preciso de outro favor seu".
Dispus-me a ajudar em tudo.
Ordenou-me que abrisse uma gaveta e procurasse um dossier. Encontrei-o e ele pediu-me que o guardasse em minha casa, durante o período em que estivesse fora.
"Tenho receio de que alguém possa...". Só prosseguiu após uma pausa para pensar na palavra certa: "...fazer uma visita ao meu apartamento vazio".
A segurar os documentos, sentei-me do outro lado da sala.
"Esse dossier contém recordações importantes para mim", acrescentou o velho.
"Comigo, isto estará em segurança", respondi, mostrando-lhe a pasta.
Ficámos os dois em silêncio, até que se ouviram passos na escada. A equipa de emergência médica chegava.
"Nem me apresentei", disse o velho, numa voz arrastada e fria. "Chamo-me Fárkas e devo-lhe a minha vida, senhor Kormányos".
Nem tive tempo para me surpreender com o facto dele saber o meu nome. Os paramédicos tinham chegado. Fizeram o seu trabalho e levaram Fárkas numa cadeira de rodas. A comoção atraíra a curiosidade de outros vizinhos. A porta foi fechada e a velhota do apartamento ao lado ficou com o gato e com as chaves.
E só então dei comigo sozinho, nas escadas, a descer para o meu andar, com um dossier desconhecido na mão.

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21.4.07

a terceira pessoa

naquela pintura estão os amantes deleitados sobre a cama
e pelo escuro do retrato quase não se percebe, ao fundo,
a imagem deslizante da terceira pessoa, a que segura o copo,
que pode ser de água da vida sempre pronta a renascer
que pode ser de cicuta, breve gesto para a morte.

naquela pintura estão os amantes deleitados sobre a cama
e nos enrolados cabelos do retrato quase não se percebe
se na cama se ama ou se guerreia sem solução
o que pode ser o encontro anunciado pela manhã
o que pode ser o refúgio escondido pela noite.

naquela pintura estão os amantes deleitados sobre a cama
aqueles que irão respirar um do outro o breve gozo
amansando em sua volta o suor eléctrico dos seus corpos
que ainda podem ser de reencontro
que ainda podem ser de mor sucesso.

naquela pintura estão os amantes deleitados sobre a cama
e a mão do pintor, onde estará senão no copo
imperceptivelmente seguro pelo incógnito olhar ao fundo
e assim aos amantes foge o entendimento do ódio
e assim aos amantes só resta perecer.

19.4.07

Conheces por dentro cada flor deste jardim.
Enquanto falas, em aparente repouso
na raiz dessa luz entre as tuas coxas,
a minha mão aberta.
Aguarda outra manhã igual que não o seja.

Por vezes, devia sobrar o infinito que vivemos
no lugar do frémito, da pele que se deseja.