18.5.07

Territórios de Caça (XVI)














16. No dossier havia várias fotografias, cujo sentido não compreendi. Soldados, uma foto de Budapeste, talvez nos anos 50. Dois homens em skis, no meio de uma floresta. Numa das imagens, estavam diversos oficiais, com números; mais em cima, escrito a lápis: "Hargitai", mas era impossível identificar qual dos oficiais era Hargitai, sem mais nenhuma informação sobre essa pessoa. Havia fragmentos de textos, mas só copiei um deles para o meu caderno:
"Não imagino porque razão me interessei por aquele prisioneiro. Talvez ele se parecesse comigo, numa circunstância que podia ter sido a minha. Hargitai estava preso há dois anos. Era um homem orgulhoso, calado, sem família e que não parecia ter muitos amigos na comunidade dos detidos. O que fiz, a princípio pretendia ser uma experiência: fazer constar que fulano dera algumas informações, separá-lo da massa dos outros presos, para proteger o nosso verdadeiro informador nas celas. A ideia era iluminar aquela personagem inocente, que tinha todas as condições para se destacar da massa anónima. E, ao transformá-lo num farol que atraía as atenções gerais, preservava-se o verdadeiro culpado.
Foi o que fiz, até com ajuda do informador. Chamei o alvo para consultas médicas, marquei outros encontros onde estavam diferentes oficiais do campo; conversávamos, ficávamos no calor do gabinete; tudo tinha um aspecto inocente; depois, fingi um tratamento que não parecia necessário; fiz constar isso mesmo, alimentando as suspeitas; aproveitei o clima de paranóia e a maldade natural do ser humano.
Ao fim de algumas semanas, Hargitai já parecia um peixe fora do cardume. Começou a andar verdadeiramente sozinho, talvez ainda iludido com a sua independência. Nessa altura, compreendi que o meu prisioneiro era odiado, não pelas suspeitas que começavam a incidir sobre ele, mas apenas porque não cumprimentava as pessoas que desprezava e por se considerar mais digno do que os outros. Estava autenticamente convencido da superioridade dos seus valores, o que é algo de insuportável para muita gente. Por exemplo, do alto do seu moralismo, Hargitai exigia um tratamento igual para todos os prisioneiros, contestando abertamente o sistema hierárquico que existia no campo (os próprios prisioneiros tinham recriado uma nova sociedade de classes).
E um dia, o nosso informador aproveitou uma daquelas discussões de cela, sobre a autoridade, para lançar a farpa que tínhamos previamente combinado: Hargitai defendera qualquer coisa inofensiva sobre o uso e a limpeza das casas de banho, quando o nosso informador disse: ‘Falas como um verdadeiro comunista’. Na frase de aparência inocente, havia uma insinuação venenosa.
Nunca se imagina que as relações de poder e a luta pelo território, os comportamentos de medo e de agressão, se tornem ainda mais brutais no ambiente confinado e de recursos escassos de uma prisão política. Para o carcereiro, o inimigo é a solidariedade entre os presos e, enfim, tudo aquilo a que nos habituámos a chamar de humano, embora o verdadeiro humano seja o acto de isolar a vítima, e depois, de a caçar e matar para nosso deleite.
Ao fim de algumas semanas, após ter perdido a solidariedade dos outros, Hargitai estava lentamente a perder peso. Foi nessa altura que tive a ideia de lhe dar comida extra, uma delicatessen a que a sua fome não poderia resistir, por muito que a combatesse o orgulho. E, claro, bem manipulado pelo nosso informador, alguém descobriu o petisco assim tão habilmente plantado na fragilidade da minha vítima.
A partir desse momento, correu entre os presos a notícia confirmada de que Hargitai era o informador, embora fosse apenas um iludido, um pobre idealista apanhado nos poderosos acasos do destino. Em 56 até se portara com coragem, mas fizemos correr que era tudo mentira, que já nessa altura fora delator sob tortura.
Eu fizera-lhe um cerco lento, uma caça de paciência, à espera que aquele homem aceitasse a fatalidade que se lhe impunha.
Apenas subestimei a humanidade dos outros. Cada um dos prisioneiros virou-se contra Hargitai que, desprezado por todos, foi mergulhando num abismo de honra amarfanhada. E cada prisioneiro com quem se cruzava segredava-lhe que seria melhor se ele acabasse de vez com a sua vida sem valor. E foi isso mesmo que Hargitai fez: numa noite de lua cheia, saiu da camarata e correu, feito um doido, para o ponto mais protegido do campo, enquanto gritava ‘nunca traí, nunca traí’. Derrubou-o uma rajada de metralhadora".

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4 Comments:

Blogger CPrice said...

e assim se derruba a honra .. o orgulho .. o indíviduo .. cheio de significado este episódio Sr. LN .. (continuo a gostar .. muito)

8:55 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

belissima tradução de uma fantástica novela húngara. parabéns

10:57 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Fantastico, sem palavras :-)
MARIA JOÃO

11:20 da manhã  
Blogger Luis Naves said...

agradeço todos estes comentários

2:02 da tarde  

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