20.6.07

Sasha


Os corvos passeiam-se todas as tardes em frente à minha janela. Voam em círculos largos, e eu gosto de ficar aqui a olhar para eles, enquanto fazem voos planados dentro do nevoeiro. Se os fixar durante muito tempo e não pensar em mais nada, se encostar a testa ao vidro e ficar assim, muito calado, só a olhar para eles, quase me parece que também estou a voar para lá da janela, no meio do nevoeiro, e depois mais alto, junto ao céu.

Mas dura pouco, não sei porquê. Às vezes penso que gostava de ser um daqueles pássaros negros que andam por aqui, perto da janela. Depois passa, os corvos gritam, e eu volto a olhar para o rio lá ao fundo e para os barcos que passam para cima e para baixo. Soltam uivos aflitos antes da curva larga, mais para leste, que vejo daqui, mesmo no cantinho da minha janela. Se não fossem os pássaros, ficaria só a olhar para o rio cinzento e não pensava nestas coisas.

A avó não gosta que eu fique a olhar para os corvos à janela e quando dá por isso chama-me. “Sasha, vem cá, vamos lanchar”. Ou então “Sasha, os trabalhos de casa, chega aqui, vou ajudar-te”. E eu deixo os pássaros a voar lá fora e a gritar, e vou.

Não se pode tomar banho no rio. Nem pescar. Mas eu bem vejo os pescadores quando vou para escola. Estão todos para lá da curva que se esconde atrás dos prédios cinzentos e cor de ocre. No último inverno, quando o rio gelou e a neve caiu durante duas semanas seguidas, os homens abriram buracos no gelo para poderem chegar até à água e lançar as linhas de pesca. Eu não vi, mas o Sergei contou-me que um dia, quando a neve parou de cair e o céu ficou um bocadinho menos escuro, um deles escorregou no gelo, caiu dentro do buraco e desapareceu. Deve ter sido levado pela corrente que é muito forte e ficou preso debaixo do chão gelado que cobriu as águas durante meses. Pelo menos foi o que disse a avó. Recomendou-me que não fosse para lá. Eu não fui. Tenho perguntado ao Sergei se já encontraram o pescador, mas ele também não sabe.

Vou sentir a falta dele. O pai foi-se embora há tempos. O Sergei fez-se valente e contou que ele ia em missão para um país distante onde faz sempre sol e nunca há frio. Mas a mãe disse à minha avó que o marido ia procurar trabalho. Não falei nisso ao Sergei, ele é o meu melhor amigo. Na escola, quando às vezes tenho falta de ar a jogar à bola e os outros se riem, corre com eles a pontapé. Depois diz-me: “Sasha, anda daí, estes tipos não sabem jogar”.

No outro dia, o pai do Sergei mandou dinheiro. Está a trabalhar numa praia, nesse país onde há sempre sol, e vive numa casa com outros que também são de cá. A minha avó falou nisso ao pequeno-almoço, mas eu não disse nada. Agora o Sergei anda todo contente. O pai comprou bilhetes de avião para ele a para mãe. Vão-se embora amanhã. Eu fiquei contente porque ele vai para esse país do sol, mas também fiquei triste. Não disse ao Sergei, mas ele deve ter percebido. Prometeu-me que havia de me mandar um bilhete de avião. Eu ri-me. Mas à tarde, quando estava a olhar para os corvos lá fora, apeteceu-me chorar. Não falei nisto à avó, nem à minha mãe, mas acho que elas perceberam. Ontem fizeram um bolo de propósito para o lanche. Estava em cima da mesa da cozinha quando cheguei da escola. Parecia uma festa e a mãe até pôs um disco do Pyotr Leshchenkop, de que ela gosta tanto, para dançar comigo na sala.

A avó às vezes chora. Sei porque já vi. E também vi as caixas dos remédios que traz para casa, por causa das dores de cabeça e da falta de ar. Eu também tenho falta de ar. Foi por isso que me levaram ao médico, ao hospital. Mandaram-me subir para uma balança, picaram-me o braço e tive que respirar com força para dentro dum tubo. Depois disseram à avó que eu estava bem. A médica pôs a mesma cara que a professora quando não está satisfeita, mas fez-me uma festa na cabeça e escreveu umas palavras num cartão azul que trago sempre comigo. Está lá escrito o nome duma terra que fica no norte e onde há muito tempo já não vive ninguém. A avó vivia lá, quando a minha mãe era pequenina, mas teve que vir com os outros todos no autocarro depois da explosão. Não vieram logo para aqui, para o pé rio. Só depois, quando fizeram os prédios. Vieram todos morar para cá, para os prédios azuis, com os seus cartões azuis. Eu nasci aqui e também tenho um cartão azul.

A mãe às vezes também anda doente e não vai trabalhar. Elas pensam que eu não sei nada, falam em segredo. Mas o Sergei não tem cartão azul, e já me contou do desastre, há muitos anos, quando a central nuclear explodiu. Fez uma enorme bola de fogo, ardeu durante muitos dias e muitas noites, com uma luz muito brilhante, e envenenou a cidade. Tiveram que fugir todos. Emparedaram a central e fecharam tudo. É por isso que hoje a avó tem dores de cabeça, e a minha mãe às vezes fica doente, explicou-me o Sergei. A mãe dele contou-lhe que foi o sopro envenenado da explosão. Um dia vou perguntar à avó como foi mesmo que aquilo aconteceu. Ela estava lá, deve saber. Mas hoje não. Hoje quero estar aqui, só a olhar para os corvos e a pensar que, por momentos, também estou lá fora, no meio deles. Encosto a testa ao vidro e sigo o voo dos corvos. Até a avó me chamar.

*Ilustração de Sara Naves Sousa



13.6.07

Tragicomédia a Lídia Jorge

(*texto também publicado em www.bocadosdecarne.blogspot.com)





Foi no Marquês que Lídia passou por mim: a sua pele hidratada, os seus cabelos cor de trigo espetados no pescoço à laia de espadachins de ferro; o seu casaco, o seu corpo de costas. Lídia trazia o DN na mão direita.





Lídia Jorge não me disse adeus e seguia tranquila como se a avenida da Liberdade fosse sua, como se o passeio fosse a imensa continuação das suas magras pernas brancas. Lídia trazia um casaco branco sintético e os meus dedos quiseram tocar-lhe as pontas dos espadachins da cara. No momento em que me viu, Lídia Jorge disse:
- conheço-a?


E uma mulher pequena deixou cair a carteira.



Eu queria tanto tocá-la, Lídia. A sua pele branca a cheirar a jasmim, o seu casaco branco até aos joelhos à laia de dama vicentina que se protege dos outros, o rigor das suas calças pretas, os seus olhos pequenos escondidos atrás dos óculos escuros
(os seus olhos do outro lado da pele)
as minhas mãos a quererem tocar a ponta dos seus olhos cor de lama, Lídia
-eu?




Eu a querer convidá-la para um chá: falaríamos de nós, dos nossos livros, daquilo que pensamos à noite quando nenhum homem entra Lídia, quando nenhum homem nos toca na nossa cama e ficamos só nós: nós como só nós sabemos ser
- Helena de Tróia, Lídia, eu conheço Helena de Tróia






Eu vi-a, eu disse-lhe olá e a Lídia não me reconheceu
- O Forza Leal, Lídia, Moçambique nos anos 60 não pode ser diferente de Moçambique de 2005: a mesma Avenida Lenine no filme da Margarida, Lídia




a Margarida Cardoso a tocar-lhe os ombros na televisão com um casaco que pediu emprestado para a conhecer: eu sozinha no sofá com um vestido preto de seda à espera que a Lídia saísse do ecrã e me abraçasse. A Lídia a dizer
- sim?


E eu a vê-la ir, Lídia, a vê-la ir sem que a Lídia me colocasse a mão na testa, eu sem sentir o seu abraço que cheira a jasmim
(a Lídia não precisa de se aproximar para eu saber àquilo que cheira)
- a senhora não me conhece, desculpe



Eu a pedir desculpa pelo encontrão, Lídia, a Lídia a abraçar-me, a insistir para pagar o chá, as torradas, os brioches. Nós íntimas, Lídia, a Lídia a falar-me das personagens do seu novo livro, a Lídia a dizer-me que gosta de Redfish e eu a jurar-lhe que tem de vir cá a casa conhecer a minha mãe e o peixe que coze no nosso forno aos sábados( o tomate a descansar em cima do redfish com as cebolas e os pimentos, como se todos eles naquele forno fossem uma grande família Victoriana que se reencontra aos sábados)



a Lídia a jurar-me que a minha imaginação é desleal com a realidade, e nós sentadas num afamado hotel da capital a beber chá de maçã vermelha, com toda a gente a ver.






Lídia Jorge atravessou Lisboa a pé, de óculos escuros, como quem sabe para onde ir.

6.6.07

Bukowski, chá de tília e sonhos marados

porque o que é preciso é fazê-lo bem feito
com cara de quem percebe do assunto
sem tremideiras nas mãos ou nos joelhos
sem indecisões de última hora, estás a ver?

porque o que é preciso é dizer de uma vez
tudo aquilo que te aperta o peito e a goela
já que mais ninguém vai perguntar-te o porquê
de andares tão cabisbaixo a vida toda.

porque o que é preciso, o que é mesmo preciso,
é atirares-te de cabeça para a frente dos carros
que te tentam atropelar a toda a hora
que te tentam rebentar os cornos no asfalto.

porque o que é preciso, o que é mesmo preciso,
é sair de cena tirando o pó das calças e da camisa
enquanto alguém numa esplanada bebe um sumo
e retira os óculos escuros para te olhar espantado.

4.6.07

Sofia de Mello Breyner Andresen com óculos de sol e fato de banho a dizer adeus para a máquina que a filma

I

Reconheci-te logo destruída
Sem te poder olhar porque tu eras
O próprio coração da minha vida
E eu esperei-te em todas as esperas



II

Conheci-te e vivi-te em cada deus
E do teu peso em mim é que eu fui triste
Sempre. Tu depois só me destruíste
Com os teus passos mais reais que os meus.



S.M.B.A.








O tempo chegava-nos aos joelhos como água da praia e eu era aquilo que tu eras há 40 anos: há 40 anos quando não existiam fotografias nossas na sala e tu eras apenas uma jovem mulher de unhas pintadas, a apanhar sol, numa reputada praia da Figueira da Foz
- temos os mesmos ombros, os mesmos cotovelos, o mesmo contorno de ancas




os homens sempre te desejaram muito
- eu sempre me pensei em ti





Tu sentada na minha cama a dizeres-me que cortar as unhas dos pés é um acto de amor com o nosso corpo
- hoje o mesmo corpo e os mesmos olhos tristes: o mesmo bico do seio cor-de-rosa reflectido no espelho do quarto, o mesmo desenho de carne branca macia na zona da barriga; as mesmas coxas vistas de lado



Porque nós sempre tomámos banho juntas, como se ver o teu corpo e o teu sexo fosse conhecer-me a mim na cabeça sem precisar de espelho
- nós e os mesmos refegos nas costas, nós e a mesma cor de cabelo




Ver-te com tempo na cara é ver-me velha.






Porque foram quebrados os teus gestos?
Quem te cercou de muros e abismos?
Quem desviou na noite os teus caminhos?
Quem derramou no chão os teus segredos?

S.M.B.A.






De verdade, apenas nos sentamos juntas no sofá. Quando demos por nós era Sofia de Mello Breyner quem nos fazia adeus na praia, dentro da capa do seu livro.